Pumpkin People: a tribo de convívio e entreajuda da Serra da Aboboreira

Há quase cem pessoas de dezassete nacionalidades no grupo de Whatsapp que foi criado para reunir recém-chegados à serra, desejosos de se integrar. Gente que trocou a cidade, e até o seu país, por um dia-a-dia sem pressas, com mais autossuficiência e ligação à natureza na Serra da Aboboreira. O preço dos terrenos com água abundante e o bom acolhimento que sentem, numa cultura mais descontraída, são a receita desta atração. Há cinco anos que a comunidade vai crescendo, com muitas famílias estrangeiras que reabilitam casas e replantam quintas em permacultura, trazem os seus filhos para as escolas locais e aprendem a falar português, empenhadas em criar raízes. Entre trocas de trabalho, saberes e muitos convívios, vai-se criando uma comunidade unida pelo mesmo propósito de vida.

Liz, Diogo, Zuzanne, Johannes, Sandra, Catarina, Shayna, Pierre, Helder e Summer, entre muitos outros portugueses e estrangeiros, vivem espalhados por pequenas freguesias de Amarante, Marco de Canaveses e Baião, os três concelhos que partilham os 118,9 quilómetros quadrados da Serra da Aboboreira. Entre as casas deles pode haver uma hora de caminho. Há quem viva em Gondar, Amarante, e há quem viva quase no Douro, Baião. Porém, mesmo não sendo vizinhas da porta ao lado ou até da mesma aldeia, todas estas pessoas, juntamente com dezenas de outras, fizeram-se vizinhas pelas próprias mãos. 

Um grupo de Whatsapp chamado “Pumpkin People”, criado há cinco anos, é a porta de entrada para uma comunidade que não tem parado de crescer. Para esta reportagem, fomos conhecer uma dezena destas pessoas, portuguesas e estrangeiras, que se mudaram para a serra da Aboboreira – a começar pelos fundadores do grupo. A maioria daqueles que se juntaram ao grupo – e se referem a si mesmos abreviadamente como “Pumpkins” – são portugueses, mas há também membros provenientes da Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, Bélgica, Holanda, Polónia, África do Sul, Suíça, Israel, Zimbabué, Irlanda, Finlândia, Roménia, Chéquia, entre outros. Muitas destas pessoas juntaram-se até numa grande festa de Natal, cuja mesa se encheu de pratos tradicionais de vários países. 

A lista de provas de que são vizinhos de facto, mesmo não o sendo de porta, é imensa. Vai da construção de casas em conjunto e da ajuda em trabalhos agrícolas ou partilha de ferramentas, ao ensinar saberes e truques, cuidar dos filhos uns dos outros e conviver, em festas e churrascos à beira do rio. O apreço pela vida familiar e a partilha de alguns valores na forma de criar os filhos – com poucos ou nenhuns ecrãs, sem telemóvel até ao final da adolescência, com tempo livre para explorar a natureza e envolvimento nas tarefas agrícolas – são princípios comuns da comunidade Pumpkin People.

Outro dos valores partilhados é a liberdade de ser e agir, sem imposições de comportamento ou de presença. Nas entrevistas que fizemos a estes dez membros da tribo, perpassa o respeito e a valorização das idiossincrasias. Quase todos referiram a necessidade deste espaço de arbítrio como uma das maiores razões para mudar de vida. “Eu gosto da minha solidão, mas se preciso de alguma coisa, basta mandar uma mensagem e alguém vem muito rápido”, refere Diogo Cunha, um dos três primeiros membros do grupo do Whatsapp que deu origem a esta tribo em permanente crescimento.

Diogo, Liz e Zuzzana junto à cabana no terreno do projeto Forestlings (de Liz), que foi construída com a ajuda de muitos “Pumpkins”, com técnicas ecológicas. Foto: Dora Mota/Flor do Tâmega DR

Diogo é natural do Porto e viveu em vários países, dos Estados Unidos à Europa, até se instalar em Amarante. A pintora Zuzanne Olowska Hope é de Gdansk, na Polónia, e trocou a Inglaterra pelo Marco de Canaveses, onde vive; e por Amarante, onde estabeleceu a sua galeria de arte Muso, bem no centro da cidade, entrelaçando o seu trabalho artístico com a cultura amarantina. Liz Clark é de Kent, na Inglaterra, e uma viajante de mochila às costas que se foi apaixonando por Portugal, até decidir ficar e se tornar, aqui, mãe de dois filhos e impulsionadora de um projeto educativo em comunhão com a natureza, o Forestlings. Foi do encontro deles três que nasceu a comunidade Pumpkin People, há cerca de cinco anos. 

Zuzanna e o ex-marido, Peter, conheciam pouca gente quando ouviram Diogo conversar em inglês com a ex-mulher, alemã, numa adega de aldeia onde o português (ainda sem cozinha na casa em reconstrução) almoçava muitas vezes. Correram para eles, na ânsia de finalmente conhecer outros estrangeiros na Aboboreira. “Estava aqui há três anos, mas sentia-me bastante sozinha. Tinha vizinhos muito amigáveis, mas tínhamos ideias diferentes que nem sempre iam ao encontro do entendimento deles. Quando encontrámos estas pessoas, finalmente tínhamos amigos, criámos um grupo, começámos nós a conviver e os nossos filhos a brincar juntos”, recorda Zuzanna – ou Zu, como todos lhe chamam. Liz foi o terceiro ângulo deste triângulo fundador e é, hoje em dia, unanimemente considerada como a principal dinamizadora dos Pumpkin People.

O nome do grupo do Whatsapp nasceu da artista Zu, habituada a fazer retiros de arte naquela serra habitada desde a Idade da Pedra, riquíssima em património natural e em património cultural, que se estende por longos planaltos e chega a elevar-se até aos mil metros de altitude. Este “contraforte granítico” situado no extremo ocidental do maciço montanhoso Marão/Alvão, que fica muito próximo da Área Metropolitana do Porto, foi formalmente classificada como Paisagem Protegida Regional em 2023.

“Não sabia se o nome vinha daquelas pedras enormes no topo, que parecem abóboras no campo”, conta ela, no português bastante escorreito que, tal como a Liz, lhe sai com naturalidade. Dos três fundadores, o grupo cresceu para quase cem pessoas, entre elas cerca de 60 famílias, de dezassete nacionalidades, e para uma organização mais complexa – agora há subgrupos para tudo, desde workshops (de cestaria ou de fermentação natural, por exemplo); partilha de ferramentas; trocas e vendas de artigos; pedidos de ajuda para trabalhos agrícolas ou outros; eventos mais formais, como concertos, ou mais informais, como noites de cinema e de pizza. 

Há ainda um subgrupo dedicado a fogos florestais desde que, no final do verão passado, um grande incêndio consumiu cerca de 40% da área de Paisagem Protegida Regional. Nessa altura, o grupo Pumpkin People revelou-se fundamental para proteger pessoas e bens. Foi através de trocas de mensagens que moradores se organizaram e se juntaram, com carrinhas carregadas de bidões de água de mil litros e bombas de água, para combater as chamas e impedi-las de passar da floresta para as zonas habitadas. Com três dias de fogos ativos, os bombeiros de Amarante não davam vazão às urgências e não conseguiam chegar ali.

“A estrada foi a linha de defesa e o fogo não passou”, recorda Diogo, que nesses dias foi bombeiro informal e cujo serviço foi reconhecido pelas autoridades locais. Em outubro do ano passado, foi um dos três representantes dos moradores da Aboboreira a participar numa visita organizada pela Associação de Municípios do Douro e Tâmega, a entidade gestora da Paisagem Protegida Regional da Serra da Aboboreira, juntamente com investigadores do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, para pensar no futuro da serra ao nível da prevenção de tragédias como aquela – uma visita que a Flor do Tâmega acompanhou em reportagem.

A disponibilidade de água é, como sublinha Diogo, uma forte razão para os estrangeiros à procura de uma vida mais simples no campo se estarem a instalar cada vez mais na região Norte do país. Helder Valente – outro membro do grupo -, viveirista, formador e consultor em permacultura, ajuda pessoas nesse processo de mudança para o campo e reforça que esse recurso está não só a atrair estrangeiros para Portugal, mas estrangeiros de outros pontos do país para este território. “Há um fator que faz muita diferença para as pessoas virem para o Norte, que é termos água de muita qualidade e em abundância. Mesmo entre os ‘expats’ que vivem no Sul, nos últimos anos tem havido uma migração muito maior para Norte”, afirma este especialista em permacultura, muito viajado e grande conhecedor das dinâmicas de agricultura. “A nossa região à volta do Douro e Tâmega está a sofrer uma mudança grande por causa disso”, salienta Helder, cujo contributo singular para a região apresentaremos adiante com mais detalhe.


Zuzanna, Pascoaes e Da Vinci

Voltemos, então, a Diogo, Zu e Liz, que nos vão contando histórias dos Pumpkin People, enquanto nos dirigimos para aquele que será o novo lar da pintora polaca e da família –  e o segundo nas montanhas do Marco de Canaveses. É uma pequena casa, por ora ainda em obras, de amplas vistas sobre a paisagem, integrando um terreno com árvores de fruto e flores, cujo acesso implica alguma destreza e salto de pastor. Zu faz o percurso com o vigor do hábito e sem uma beliscadela na sua graciosidade, ela que está mais vestida para uma esplanada na cidade do que para as irregularidades campestres, com um vestido fresco, collants e uma pequena bolsa de verniz ao ombro. No campo feito verde brilhante pela luz do sol, aponta-nos o anexo de pedra de onde salta, em alegre trote, um dos seus mais queridos amigos, o burrico Da Vinci. É um sedutor, este burro que continuamente nos enfia o focinho nos braços, reclamando carícias.

Zuzzana e Da Vinci. Foto: Dora Mota/Flor do Tâmega DR
Foto: Cedida por Zuzanna Hope/DR

Foi a primeira vez que vimos Da Vinci, mas já conhecíamos Zuzzana de outra reportagem, sobre a movida cultural de Amarante, quando nos mostrou a Muso, uma galeria internacional no centro de Amarante, cujo nome é uma homenagem ao seu “muso de inspiração”, o poeta, escritor e filósofo amarantino Teixeira de Pascoaes. Sensibilizada pela poesia de Pascoaes, começou a estudar português para poder lê-lo e foi graças a ela que se publicou a primeira antologia de poemas do amarantino traduzidos para inglês. Depois de fazer uma parceria com o Município e a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, lançou uma chamada internacional para a criação de arte visual. Foi assim que, em 2022, foi lançado “Muse”, com 30 poemas ilustrados por 21 artistas, que deu origem também a uma exposição no Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso.
Na sua galeria de grandes janelas, pode ser vista a pintar e recebe todos os que querem entrar e ver o espaço. Ali, exibe obras de artistas nacionais e internacionais, muitos deles emergentes, incluindo os seus quadros, alguns inspirados nas paisagens e vida quotidiana de Amarante, ou aspetos da sua iconografia, como as fotografias de Eduardo Teixeira Pinto.

Depois de ter vivido em Londres, Zu começou por abrir uma galeria com outros sócios no Porto, mas não demorou até estar a 100 por cento no Baixo Tâmega – instalou-se no Marco de Canaveses e a sua nova casa, numa freguesia limite, fica muito perto das casas de Diogo e Liz, que pertencem ao concelho de Amarante. “Eu estava a viver em Inglaterra com o meu ex-marido, estávamos a pensar em mudar-nos e podíamos ir para qualquer lado na Europa. Pensei na França ou na Itália, que também é muito bonito, ou mesmo na Polónia, mas aqui era mais barato, tínhamos aqui alguns amigos e por isso viemos ver”, recorda Zuzzana. 

O que encontrou ao cabo de uns dias na região arrebatou-a. “Quando vimos a terra, experimentamos a cultura e até nesses poucos dias vimos como tudo é mais lento e as pessoas se encontram para almoçar, a comida é tão deliciosa e honesta, vemos grandes famílias juntas, crianças a brincar juntas, pessoas mais novas e mais velhas juntas, ficamos completamente apaixonados por esta cultura mais lenta e relaxada”, afirma. 

Dora Mota/Flor do Tâmega DR

“Portugal é o país mais barato e mais seguro da Europa”, assinala Diogo, justificando assim o facto de tantos estrangeiros terem escolhido, nos últimos anos, mudar-se de armas e bagagens para a serra da Aboboreira, deixando os seus países para trás e empenhando-se em criar raízes – compram terrenos, reconstroem casas com as suas próprias mãos, aprendem a língua, estabelecem-se nas vizinhanças portuguesas, matriculam os filhos nas escolas locais e criam-nos de pés e mãos na natureza. As duas filhas de Zu, uma criança e outra adolescente, têm uma vida onde há tempo para plantar, criar e cuidar de animais. “A mais pequena adora isso totalmente”, refere Zu.

A mais velha “começa a pensar na cidade”, mas a serra é a casa dela, sublinha a mãe. No caso de Liz, e de outros “Pumpkins” com quem falamos, como se verá ao longo desta reportagem, isso significa que os seus filhos, que aqui nasceram ou cresceram desde muito pequenos, se aculturaram quase completamente em Portugal. 

Quanto aos adolescentes, quando se percebeu que precisavam de atenção extra a solução surgiu também no seio da tribo: no grupo do Whatsapp Pumpkin People, há um subgrupo onde se partilham só atividades e propostas para eles. Liz, que guarda em si um manancial de ideias, está sempre a fazer planos – e a levá-los avante. Há dois anos, organizou um acampamento de circo, onde uma professora ensinou acrobacias. Da agenda consta ainda uma escola de floresta para adolescentes dos 12 aos 16 anos – o fim de semana “Disconnect to Conect Youth Camp”, que se realiza no final deste mês de junho. Há ainda eventos para assinalar datas como o Halloween ou os solstícios.


A “fatia de paraíso” onde se faz um festival

“Os filhos favorecem muito a aproximação dos pais do grupo, porque há bastantes crianças entre todos nós”, indica Diogo, para contar como a vida serrana está a criar uma nova geração diferente. “Já ouvi mães a dizerem que é incrível ver como eles se apresentam na escola, como estão a milhares de quilómetros de distância em termos de saber estar, saber fazer, como reagir. Ao nível da consciência do mundo e de si mesmos como seres humanos. Eles sabem quem são, estão menos conectados com aparelhos eletrónicos”, refere.

Diogo Cunha na sua propriedade em São Simão. Foto: Dora Mota/Flor do Tâmega DR

“Tenho dois filhos de 6 e 7 anos, trabalho com crianças, sou ama, trabalhei em infantários mais de dez anos e vejo imenso isso”, corrobora Liz. “Vejo a diferença entre crianças que são bravias, digamos, a quem é permitido explorar livremente as suas habilidades motoras e habilidades sociais. Nós criamos essa conexão na infância e ela mantém-nos mais cientes quando crescemos”, sublinha. Diogo reforça que a filha mais velha, de 13 anos, “evoluiu muito” nesse sentido desde que foi morar com ele na Aboboreira. “Isto vai ser melhor para o mundo em geral, certo? Esse é o objetivo. Eles têm mais liberdade aqui, quando saem da escola, podem sair e ir brincar”, diz.

Não falta espaço para brincar na “fatia de paraíso” de Diogo, como ele lhe chama. No seu terreno em diferentes cotas, encontra-se a bonita casa de campo com linhas simples que reconstruiu com as próprias mãos e a ajuda de dois trabalhadores da aldeia. 

É do Porto, mas saiu de lá há muitos anos. Emigrou para Inglaterra, depois para os Estados Unidos e, quando voltou, não quis a vida urbana. Andou à volta do Porto a ver onde se podia instalar. Foi a Itália buscar a caravana onde acampou durante dois dos sete anos em que assentou a poeira da vida de estrada, em frente à ruína que se tornou a casa da sua família. Foi professor, é canalizador, jardineiro e faz vários trabalhos para ganhar a vida, sem ter um emprego fixo. “Vim para aqui para viver, para descansar, para fugir das pessoas”, resume. 

Ao fugir das pessoas, encontrou outra família, com ideias semelhantes às suas – a valorização da liberdade física e espiritual difícil de alcançar em lugares urbanos, uma relação com a terra que vai muito além do plantar uma horta e é uma filosofia de vida. E – algo que transpira de todos os nossos entrevistados – o alívio e a leveza de se poder ser quem se é, fora de algumas amarras familiares, sociais, culturais, com as quais nem sempre se consegue lutar. Há alegrias simples a cada passo: com um sorriso luminoso, Diogo aponta uma cobra de água enrolada na presa junto a um terreno cheio de árvores a dar sombra, e onde no Verão coloca uma comporta para se poder tomar banho. 

Liz e Diogo no recinto do Festivale, que acontece neste mês de junho.
Fotos: Dora Mota/Flor do Tâmega DR

Esse pedaço de terreno cuja frescura de sombra consola nos dias quentes é também o recinto do Festivale, um festival com DJ que Diogo organizou pela primeira vez em setembro do ano passado e, este ano, se repete neste mês de junho, por ocasião do solstício. Contrariamente ao que é habitual nesta tribo cheia de famílias e crianças, o Festivale destina-se aos adultos. No vale do rio Ovelha, ali em São Simão, não faltam refúgios com água fresca para os Pumpkin People passarem horas de convívio em refeições partilhadas e banhos.


O sonho de Liz é uma terra cheia de raízes

A dois passos da casa de Diogo, Liz também tem a sua “fatia de paraíso” – o terreno onde funciona o Forestlings, o seu projeto educativo em construção, que é uma escola de floresta e de permacultura para todas as idades. Já fomos apresentando esta nativa de Kent, no sudeste de Inglaterra, descrita por todos os nossos entrevistados como a grande dinamizadora da tribo Pumpkin People. Elizabeth Clark é um nome demasiado formal para a mulher alta, risonha e desembaraçada que conhece toda a gente e todos os lugares, se esforça por dizer tudo bem certinho em português e nos recebe com uma bela merenda onde cabem vários alimentos feitos pelos Pumpkins (pão de fermentação natural, pickles e kombucha). Toda a gente lhe chama Liz – e Liz chama toda a gente para tudo.

Liz no seu terreno, onde está a construir o projeto educativo Forestlings. Foto: Dora Mota/Flor do Tâmega DR

Sigamos pela visita guiada que nos faz ao seu terreno numa encosta, por onde têm passado muitas pessoas de vários países, que trocam trabalho na terra por uma estadia na Aboboreira, no âmbito de plataformas de intercâmbio cultural como a Workaway. É um cantinho muito frequentado pela comunidade, que ajudou Liz a erguer uma cabana para as atividades com técnicas de eco-construção (ainda em acabamentos); e que vai ajudando a plantar o seu jardim mandala e os seus talhões de agrofloresta e agricultura regenerativa. Tem lá árvores, vegetais, ervas aromáticas, frutas e flores. 

“Vou fazer um pequeno banco para que possamos observar o jardim de mandala, porque a ideia é relaxar e aproveitar. Eu quero conectar as pessoas com a natureza, fazê-las desacelerar, apreciar as pequenas borboletas, porque é muito curativo, como os banhos de floresta”, afirma Liz, que não tem pressa em ver as suas plantações crescerem até onde sonhou. “Plantamos e esperamos, será bonito um dia. Pode demorar alguns anos”, diz. Naquele espaço, também organiza regularmente workshops  e eventos para famílias e crianças, jogos, festas temáticas – enquanto trabalha também como ama de crianças.

Na Forestlings, há eventos para crianças e famílias. Foto: Dora Mota/Flor do Tâmega DR

Tirar do chão da Aboboreira a própria comida é um desígnio que pratica e promove, pela importância da soberania alimentar. “Dentro do grupo, estamos a pensar em criar uma espécie de cooperativa alimentar. Ainda não chegámos lá, mas já comprámos juntos uma vaca, azeite, amêndoas, detergentes, e produtos a granel em quantidade”, conta esta mãe de dois filhos pequenos. A serra é a casa da inglesa há quatro anos, ainda que tenha chegado a Portugal há doze, de bicicleta e mochila às costas, para assistir a um festival. Ficou seis meses numa comunidade em Castelo Branco, aprendendo eco-construção, para depois viajar mais um pouco pela Europa com o companheiro até se instalar em Amarante, para onde atraiu outros estrangeiros.

São eles agora com quem conta na sua vida: “Eu sinto que nós criámos uma família além da família, porque muitos de nós estão longe da família. Esses laços ajudam. Os meus filhos conhecem estas pessoas desde que têm um e dois anos, para eles são a família”, assinala Liz.


Summer e Marc voltaram atrás no tempo

Os ingleses Summer e Marc Riley, com os seus dois filhos, são alguns dos que responderam ao chamamento de Liz. Mudaram-se há dois anos de Sheffield, no norte de Inglaterra, para Gouveia São Simão, Amarante, ao cabo de algum tempo a pensar em sair de uma vida “stressada da cidade”. Já tinham saído de Londres, onde se conheceram, para Sheffield, de onde eram ambos naturais, à procura de outro ritmo. Mas apesar de terem conseguido desacelerar, ainda não era suficiente. Empurrados pelas circunstâncias do Brexit, decidiram mudar-se, mesmo sem conhecer bem o país – Summer nunca tinha estado em Portugal e Marc tinha estado apenas uma vez. Mesmo assim, quando chegaram, numa autocaravana, depois de passar por outros países da Europa, “nós sabíamos que poderíamos viver aqui para sempre”, recorda ela.

Summer Riley é professora de yoga e dá aulas à comunidade em Jazente. Foto: Cedida por Summer Riley/DR

“Esta comunidade parece ter ideias muito parecidas com as nossas. No topo da nossa lista de requisitos, estava comunidade. Nos Pumpkins, temos uma família: avós, amigos, toda a gente. Nós apoiamo-los e eles a nós”, descreve Summer, que nutre o mesmo sentimento pela comunidade portuguesa que recebeu a sua família, e onde os filhos de 8 e 13 anos estão bem integrados, frequentando a escola pública local. Compraram a sua propriedade há um ano e ela foi-se estabelecendo como professora e terapeuta de yoga, especializada em saúde feminina – uma prática que começou a estudar há 12 anos, enquanto trabalhava na área do marketing. Marc ainda trabalha em marketing, a tempo parcial, mas também é instrutor de yoga. O casal promove aulas de yoga e retiros para estrangeiros na sua propriedade e Summer dá aulas gratuitas de yoga à comunidade local no espaço Porto D´Artes, em Jazente, a freguesia vizinha. Ver os seus filhos crescer de forma mais lenta é todo o lucro da mudança, sublinha a inglesa. “Foi uma das razões para mudar, o stress da vida quotidiana, com todos os ecrãs e distrações. É normal agora que as crianças se sintam ansiosas, e eu em criança não sentia isso. Mudar permitiu aos nossos filhos voltar atrás um pouco no tempo, podermos tomar melhores decisões, ter mais controle sobre os dias deles. Na cidade era mais difícil dizer não; aqui as famílias Pumpkin têm todas as mesmas regras, as crianças não vivem metidas no mundo online”, assinala a inglesa, de 46 anos.

Foto: Cedida por Summer Riley/DR

O filho mais novo fala um português perfeito, para o mais velho o caminho foi mais difícil – “mas adoraram a mudança”, garante a mãe. Os avós e os amigos de Inglaterra são visitas frequentes em São Simão e voltar atrás está fora de questão. “Viver no meio da natureza em paz, viver entre pessoas com os mesmos valores, poder comer comida biológica e trocar comida, ver a vizinha chegar com uma alface fresca… é uma vida que nunca poderia construir em Inglaterra, por muitas razões”, indica a professora de yoga.


De Silicon Valley para a Terra Bravia

Shayna Frank fez a mesma viagem que Summer Riley – primeiro, íntima; depois, física – mas a partir do outro lado do Oceano Atlântico, quando a vida desafogada que tinha em Silicon Valley deixou de fazer sentido. O marido trabalhava no famoso “vale do silício”, onde estão instaladas algumas das maiores empresas de serviços de internet, software e alta tecnologia, como a Google, o Facebook, a Apple, a HP, a Intel ou a eBay. Tinha riscado toda check list do que era suposto alcançar – casa, carro, uma carreira em ciência de computadores, um filho -, mas o marido passava tanto tempo a deslocar-se entre a casa e o trabalho que quase não estava com a família. “Isto era a vida, era ganhar dinheiro, e eu pensei; se isto é a vida, ‘this sucks’”, assinala Shayna.

Shayna Frank trocou a Califórnia por uma vida no vale do Douro, em Baião. Foto: Cedida por Shayna Frank/DR

É assim que esta norte-americana nos conta a sua história, entre o português que já domina com assinalável perícia, incluindo curvas e contracurvas da nossa gramática barroca, e o inglês que lhe salta da boca quando partilha estados de alma mais profundos. Vive em São Tomé de Covelas, Baião, há seis anos, na Quinta Silvestre, onde está a pôr os seus sonhos em prática. Pouco antes, quando conversava sobre mudar de país com um amigo que, recém-chegado de Portugal, elogiava a beleza desta terra, não podia adivinhar tratar-se de um sinal do destino. 

Nos tempos seguintes, veria esse nome muitas vezes: ao pesquisar de acordo com a sua lista de requisitos – um ritmo de vida mais lento, uma comunidade unida -, “Portugal continuava a aparecer no topo da lista”. Visitou-o em 2018 e, quando chegou a Amarante, resolveu-se muito rapidamente. “Ao fim de três dias, estávamos numa esplanada a comer comida fresca, já tínhamos conhecido pessoas simpáticas que nos ajudaram a procurar uma propriedade para comprar”, recorda Shayna, que se mudou pouco depois com o marido e os dois filhos, que têm agora 6 e 9 anos, e frequentam as escolas públicas locais. Os vizinhos portugueses ajudaram-nos em tudo: “Trataram-nos como família, passámos com eles o primeiro Natal”, diz. Percebeu que ajudar faz parte da cultura e que o ritmo lento que desejou tinha o reverso da medalha – esteve dois anos à espera de resolver um problema de electricidade…

Na sua Quinta Silvestre, Shayna dá formações de fermentação natural. Foto: Cedida por Shayna Frank/DR

O seu projeto de regeneração da terra, de interconexão com a natureza, de educação e de trabalho cooperativo e apoio mútuo recebeu o nome de Terra Bravia. É um sonho que está a construir alegremente e sem pressas. A quinta de agricultura convencional está em transição para permacultura e, no futuro, Shayna espera receber pessoas para mostrar como está a fazê-lo. Quem quiser conhecer um bocadinho da vida da norte-americana pode fazê-lo online, no canal de YouTube e na conta de Instagram “Silicon to Soil”, onde Shayna vai partilhando (em inglês) alguns episódios e reflexões sobre a sua vida camponesa em Portugal, assim como dicas para uma vida doméstica mais autossuficiente e ecológica.

Estava certa em seguir o instinto que lhe dizia para “fugir de uma cultura de burnout”. “É mais do que imaginávamos. Em Silicon Valley, era difícil imaginar uma vida diferente. Somos americanos, mas já não somos. Às vezes, quando vamos visitar a família, parece-nos outra vida, já não é o nosso lar”.

O seu projeto Terra Bravia promove a busca pela autossuficiência. Foto: Cedida por Shayna Frank/ DR

Na quinta com vista para o rio Douro, cultiva os alimentos da família, tem oliveiras, faz sabão com o azeite delas, e promove workshops de fermentação natural (pão, pickles, iogurte e kombucha) que os membros da comunidade Pumpkin People frequentam. 

Chegou aos Pumpkins no ano passado, quando conheceu Liz, a pretexto de angariar ajuda para as pessoas diretamente afetadas pelos incêndios. Quando o seu workshop foi anunciado na comunidade, rapidamente se encheu com 25 pessoas. E, no dia desta entrevista, Shayna ia visitar o espaço de Liz para aprender a fazer construções naturais. A partilha de conhecimento, e a disponibilidade de pessoas para ensinar tantas coisas que quer aprender, é o que mais gosta na comunidade.

A família aventureira que faz eco-construção

Tal como Shayna, Sandra André não precisou de muito tempo para escolher a sua nova casa – uma quinta de sete hectares em socalcos que fica próxima de Amarante, no topo de uma montanha, para onde se mudou com o marido Pedro Maria e os filhos, agora com 18, 11 e 8 anos. “Já procurávamos o afastamento da cidade há muito tempo, sempre quisemos isso”, conta, descrevendo um percurso de vida que tem o seu quê de arrojado. A vontade de sair do Porto era tal que, pouco antes do Natal de 2023, mudaram-se de uma casa moderna, que tinham acabado de renovar, para uma caravana na quinta que compraram na serra, onde apenas havia mato e uma ruína. 

Sandra André e o filho mais velho: toda a família ajuda nas obras da casa. Foto: Cedida por Sandra André/ DR

Escolheram Amarante por causa de uma visita casual, uns tempos antes, quando se encantaram pela beleza e pela boa energia da cidade. A propriedade que encontraram na internet não lhes parecia tão bonita como quando a viram, em abril, com campos cheios de flores amarelas. Foi amor à primeira vista. “Ao fim de 15 dias, ainda sem saber se íamos comprar ou não, já aqui andávamos de enxadas e roçadoras a procurar saber o que estava debaixo do mato e se tinha água”. Mudaram em dezembro. “Viemos de uma casa nova para uma autocaravana, no inverno, com três filhos e dois cães. Viemos super decididos daquilo que queríamos. Foi uma experiência magnífica, apesar de todas as dificuldades”, recorda Sandra. 

A obra da casa está a meio e já não vivem na caravana; as crianças andam na escola em Amarante; e é numa empresa de jardinagem do concelho que o marido de Sandra trabalha também. Estão todos apaixonados pela sua nova casa, pela sua nova vida. Não foram compreendidos por toda a gente, mas deixaram o sonho comandar – afinal, já tinham pergaminhos de serem uma família de aventuras e experiências. Tinham vivido um ano numa aldeia ecológica, no centro do país, onde aprenderam muitas das técnicas de eco-construção que estão a aplicar agora. Voltaram ao Porto por não se rever totalmente naquele conceito de “comunidade muito fechada” para reabilitar a bonita casa urbana, que venderam para se mudarem para Amarante. 

A quinta está a ser trabalhada em permacultura pela família André.
Fotos cedidas por Sandra André/ DR

Toda a família trabalha na obra da casa e no cultivo do terreno, segundo os princípios da permacultura. A ideia de Sandra é, no futuro, poderem viver da quinta, onde pretendem criar alojamentos simples, em tiny houses ou em campismo, para quem quiser conhecer e experimentar uma vida alinhada com a natureza. “Queremos mostrar ao mundo que é possível viver em condições totalmente diferentes daquilo que nos foi transmitido e daquilo que tínhamos em mente. Podemos construir o mais ecologicamente possível, podemos reutilizar materiais, sem que isso signifique viver de forma precária”, assinala Sandra André, dando como exemplo a sua casa de banho seca, que “faz muita confusão às pessoas”.

Faz confusão a alguns, mas não a todos: os filhos mais novos explicam o sistema da sanita seca com facilidade aos colegas da escola que levam a casa, e todos aprendem a utilizá-la. E o eletricista que contrataram para fazer os trabalhos de especialidade acabou por se tornar co-construtor oficial. “Ele aprende connosco e nós aprendemos com ele. Ele ensina-nos a fazer massa e a tirar um prumo; e nós ensinamos-lhe a construção ecológica”, refere.

O casal André faz muitas trocas de serviços através da comunidade Pumpkin People, o que lhes permite “aprender tudo com as mãos na massa”. Juntaram-se ao grupo pouco depois de terem chegado a Amarante. Foi assim que conheceram Liz e começaram a frequentar o Forestlings, e não só. Sandra toma conta de bebés de famílias Pumpkin, cuida de quintas cujos donos estão fora e dá massagem ayurvédica num espaço que lhe foi cedido, também neste sistema de trocas. 

A casa está a ser reabilitada com técnicas de eco-construção. Fotos cedidas por Sandra André/ DR

Sandra comove-se ao pensar no solavanco que levou a vida dos filhos e em como eles o deram com tanta alegria e coragem. “Saíram da escola deles, de uma casa nova… e de repente estamos numa caravana, no pico do inverno. Eles foram a nossa inspiração”, sublinha. Hoje, os três são músicos – o mais velho toca numa banda, e os mais novos estudam música. “Sempre que nos está a falhar a força, basta-nos olhar para estas crianças, que estão sempre animadas. Portanto, bola para a frente!”, remata.


Catarina e Arnold (re)encontraram-se em Gondar

E se Sandra André levou a sua família para a serra, foi a serra que deu uma família a Catarina Carvalho. Esta médica, portuense de gema, conheceu a serra da Aboboreira através do amigo Diogo Cunha, que ali vivia e insistia que ela o fosse visitar – o que aconteceu algumas vezes, durante a pandemia, para respirar um pouco. Catarina voltou e, numa dessas voltas, falaram-lhe de um terreno à venda, em Gondar, Amarante, junto ao rio Ovelha. Meses depois da primeira visita à serra, tornava-se proprietária de um recanto dela – a Quinta das Sumidas.

Arnold e Catarina conheceram-se quando se mudaram para a Aboboreira. Foto: Cedida por Catarina Carvalho/DR

“Já há dez anos que queria sair do Porto”, conta a médica que sempre trabalhou fora da sua cidade, cada vez mais desgastada. Era terreno fértil para o abalo que sentiu quando, numa ocasião em que prestou serviço nos Açores e jantava com açorianos, um deles ficou horrorizado quando Catarina lhe descreveu a sua rotina de duas horas por dia no trânsito. Trabalhava em Paredes quando começou a visitar Diogo. Quando comprou a Quinta das Sumidas, um conjunto com três construções (uma casa, um moinho e um celeiro) mesmo em cima do rio, pensava em fazer “um triângulo entre Amarante, o Porto e Paredes” – e ter uma casa de natureza que, afinal, ficava à mesma distância do seu emprego do que o Porto. Conheceu Zuzzana, Liz e outras pessoas, entre elas o luso-holandês Arnold Van Rossum, também ele um portuense à procura de outro estilo de vida. Ao procurarem a serra, encontraram-se um ao outro. Mudaram-se para as Sumidas e reabilitaram as três casas. Foi o artista e artesão Arnold quem fez móveis e obras em madeira, incluindo nos exteriores. Um pequeno celeiro deu origem a um alojamento rural, onde se pode ficar na varanda a ver o rio ou então descansar junto a ele, num deck cheio de confortos, ou mesmo ainda dar mergulhos nas suas águas límpidas.

A Quinta das Sumidas tem três edifícios e parte deles são para turismo rural. Foto: Cedida por Catarina Carvalho/DR

Já a casa onde moram vai ganhar um novo habitante, com o bebé que está a caminho. “Um dos meus sonhos era ter um filho criado na natureza. Para criar família, faz muito mais sentido aqui do que no Porto, num apartamento”, refere Catarina, que vai ao Porto com regularidade, mas deslocou o seu centro de equilíbrio. “Estou a cinco minutos da auto-estrada, a 25 minutos do trabalho. Faço a minha vida urbana entre Paredes e Amarante. Ganhei imenso em qualidade de vida”. Mesmo ao nível de vida cultural, tem muitas opções  entre o Sousa e Tâmega, como o Ponto C em Penafiel, até Vila Real, que não fica longe. 

No início, a família portuense não compreendeu bem a mudança, mas depois mergulharam de cabeça no seu novo projeto de vida. “Começaram a ver o potencial e agora têm um certo orgulho”, sublinha. Numa quinta onde Catarina e Arnold fazem a maior parte do trabalho, entre horta, compostagem, algumas obras e acolhimento dos hóspedes, toda a ajuda é bem-vinda. 

O antigo celeiro deu origem a um apartamento para duas pessoas, junto ao rio Ovelha. Foto: Cedida por Catarina Carvalho/DR

O grande número de famílias Pumpkin deixa Catarina empolgada, mas o que mais gosta é do facto de “haver gente de todo o lado”. Também se sentiu acolhida pelos seus vizinhos portugueses e por outros vizinhos não humanos que a acompanham no dia-a-dia: aves (incluindo a garça real), lagartos de água, sardões, abelhas e até lontras no rio Ovelha. “É um luxo e um privilégio”, assinala a médica.


Pierre está a fazer a revolução das minhocas

Para Pierre Del Cos, a noção de vida luxuosa é ainda mais imaterial – significa acima de tudo ter tempo. Quando Diogo Cunha nos apresenta Pierre, um homem magro e ágil, que fala um óptimo português com sotaque – nasceu no México, é metade mexicano e metade francês – informa-nos que ele é “minimalista”. Pierre, que vive numa casa mesmo muito pequena, na parte amarantina da serra da Aboboreira, assume o rótulo, mas sublinha que estar no campo não é condição essencial. “Pode-se ser minimalista em qualquer lugar, é uma filosofia de vida que diz que ter coisas é perder tempo de vida, temos que perder tempo a organizá-las. Quanto menos coisas temos, mais tempo temos”, esclarece.

O mexicano-francês, de 35 anos, estudou Ciências do Ambiente, viajou pelo mundo, chegou a morar em Espanha, mas apaixonou-se pela vida rural em Portugal. Foi em Celorico de Basto que começou um projeto que tem contribuído para mudar o mundo aos poucos, ensinando às pessoas e a várias organizações sociais um conhecimento ancestral – a vermicompostagem. Com outros parceiros, fundou uma associação com o eloquente nome de Revolução das Minhocas. É o ovo de Colombo para transformar o lixo em fertilizante natural, antes que ele vá encher lixeiras. “Toda a gente sabe o que é, mas ninguém faz, a sociedade já se esqueceu como se faz”, lamenta Pierre.

Pierre Del Cos está a promover uma revolução de compostagem. Foto: Dora Mota/Flor do Tâmega DR

Tal como o minimalismo, a compostagem não é um atributo da vida campestre. “A vermicompostagem tanto pode ser feita no campo como na cidade, é uma solução espetacular. Se toda a gente em Portugal fizesse compostagem, diminuíam os aterros para metade. Porque o grande problema já está identificado. Ninguém quer ter um aterro à porta de casa, mas já há vários aterros que estão esgotados. A compostagem é a solução mais fácil para resolver problemas muito complicados”, assinala Pierre. No site da Revolução das Minhocas, pode encontrar-se muita informação sobre a vermicompostagem, as reportagens jornalísticas sobre a associação, assim como tutoriais, dicas e ainda ligações às redes sociais. Fica-se ainda a conhecer os muitos parceiros desta revolução, os apoios, os prémios e, claro, a equipa de revolucionários.

Há ainda uma loja online para quem quiser comprar compostores, vermicompostores e minhocários, minhocas ou fertilizantes. Pode também convocar-se a Associação Revolução das Minhocas para lecionar formações ou criar todo o projeto de compostagem e agricultura, para fazer sensibilização e campanhas. “Nós capacitamos as organizações e as pessoas para valorizarem os resíduos orgânicos e fazerem fertilizante natural. Fazemos vários serviços, podem ser serviços muito diferentes, como um construtor”, explica Pierre Del Cos, que apostou neste modo de vida há nove anos, para fugir de um circuito vicioso de más condições de trabalho.

“Tive trabalhos precários e por isso é que decidi tornar-me empreendedor: estava farto de enriquecer os ricos, trabalhar para um patrão é isso. Não acredito em condições de trabalho dignas com um salário mínimo”, afirma. Solteiro e sem filhos, muita da fervilhante agenda para famílias dos Pumpkin People passa-lhe ao lado, mas usa o grupo para outro tipo de coisas, como troca de ferramentas.


O extravagante jardim botânico de Helder 

Helder Valente é outro dos portugueses do grupo que regressou a Portugal, depois de muitas viagens e de conhecer bem o resto do planeta. Instalou-se em Cinfães, onde tinha raízes, e já lá plantou outros milhares delas. É especialista e formador em agricultura biológica e permacultura, tendo criado a Nova Escola de Permacultura, que é tão nómada quanto o professor. Aprendeu com um dos fundadores desta filosofia lançada nos anos de 1970, o australiano Bill Mollison, e já viajou por 50 países para ensinar este sistema de planeamento agrícola que integra dinâmicas de cuidado com a terra e com as pessoas, a pensar no futuro dos ecossistemas. A sua vocação de trota-mundos para a espalhar valeu-lhe até a alcunha de “gangster original” da permacultura. 

Helder Valente ensina permacultura para todo o mundo a partir de Cinfães. Foto cedida por Helder Valente/DR

Juntar-se aos Pumpkin People foi uma decisão natural. “Sempre me relacionei muito com estes grupos internacionais de ‘back to the land’. Este movimento tem crescido muito por todo o muito por todo o mundo e especializei-me em ajudar as pessoas nesse processo. As pessoas vêm para estes sítios, não têm muitas referências e têm tendência para se juntarem para terem uma âncora e apoio mútuo”, refere Helder, sublinhando que “às vezes, os estrangeiros fazem mais coisas que os portugueses”. 

Na altura da nossa conversa, estava a preparar-se para ir dar uma formação sobre como plantar uma horta e plantar o pomar, no Algarve; e tinha já em agenda um curso em Tenerife, Espanha. No site da escola, fica-se a conhecer a agenda dos seus cursos e solicitar formações, e acede-se a um manancial de recursos sobre permacultura (livros, vídeos, biografias e informações sobre os maiores mestres daquela ciência e vários links úteis). Parece um trabalho a tempo inteiro, mas Helder Valente tem ainda outro grande projeto – um jardim botânico de plantas exóticas e um viveiro, onde tem investido muita da sua energia, ultimamente.

Não tem viajado tanto. “Estou mais focado no viveiro, a dar aulas e na consultadoria na net. Este modelo é o que me dá mais liberdade para fazer o que eu gosto mais, que é investigação e pesquisa”, refere Helder, que tem procurado desenvolver plantas mais resistentes às alterações climáticas. Percorrer o site do viveiro é uma viagem por fantasias palpáveis. Há fruteiras em vaso, frutos gigantes ou em miniatura, frutas raras e plantas medicinais. Para venda, há pêra melão, jabuticaba, mini kiwi vermelho, amoreiras que dão amoras longas como espigas de milho, entre muitas outras plantas, e também as ferramentas que Helder usa no seu trabalho.

O mini kiwi vermelho é uma das plantas disponíveis no viveiro de Helder. Foto retirada do site do viveiro, em Foto retirada de naturemagic.eu/DR

Na sua propriedade, próxima da barragem do Carrapatelo, está ainda a desenvolver um Jardim Botânico, no intuito de ampliar as experiências sensoriais da região, com um mergulho na natureza. Ainda não está em funcionamento pleno, mas recebe visitantes que querem provar produtos locais. “Não há muitas ofertas fora da viticultura, então faço degustação de frutas exóticas”, assinala. Reconhecendo o contributo dos Pumpkins para o desenvolvimento da permacultura, Helder gostaria que o grupo se dedicasse mais a integrar os habitantes locais.

Os “coaches” da Quinta da Vida de Valdonedo

O alemão Johannes Roosen-Runge alinha pelo mesmo diapasão de Helder: para ele, e para os outros quatro membros da sua comunidade que se instalou na Quinta de Valdonedo, em Penha Longa, Marco de Canaveses, em 2022, o que mais lhe agrada é “encontrar um equilíbrio entre as culturas”. Não se sentia um “alemão típico” até cá estar. “Quando chegámos aqui, vi que tínhamos todos os clichés dos alemães”, recorda, divertido. Abraçou a síntese entre o que podia dar e o que podia receber. “Gosto dos portugueses e é bom encontrar um equilíbrio entre os dois lados, entre dar estrutura a um projeto, mas também estar aberto ao improviso”, refere.

Johannes está em Penha Longa desde 2022, a reabilitar a Quinta de Valdonedo. Foto de valdonedo.net/DR

Há cinco novos habitantes em Valdonedo. Frank, médico especializado em terapia tradicional chinesa e terapias alternativas; Petra, fisioterapeuta, osteopata e terapeuta sacro-craniana; Joanna, música (trombone e sousafone) de jazz e engenheira de som; Claudia, música com formação em terapia, espiritualidade e movimento; e o próprio Johannes, trompetista de jazz, terapeuta musical e designer de permacultura, que lidera este grupo dos novos moradores daquela quinta, que estava abandonada há 30 anos. Chamaram-lhe Valdonedo – Quinta da Vida.

Conheceram-se na Alemanha e perceberam que tinham um propósito coincidente, que era criar uma nova forma de viver e de inspirar também os outros a criarem novas formas de viver. Em conexão com a terra, numa lógica de autossuficiência e autonomia, e também com a música, a espiritualidade, a relação com a comunidade. Vieram a Portugal de férias, para fazer um retiro, e perceberam que tinham encontrado o lugar certo para se lançar neste caminho. “Na Alemanha, não encontrávamos um bom lugar para isso”.

A quinta estava abandonada há 30 anos e o grupo alemão já a transformou bastante. Foto de valdonedo.net/DR

No final de 2022, encontraram a Quinta de Valdonedo e ali assentaram, no intuito de “criar um espaço onde as pessoas se pudessem reconectar com elas próprias”. O grupo de coaches quer viver de forma autossuficiente e promover seminários, workshops e outros eventos – já lá houve um concerto, para o qual foram convidados os vizinhos, e haverá mais. Johannes sublinha ter tido muita ajuda da vizinhança – “muito mais do que teria na Alemanha”, assinala.

“Não queremos fazer uma coisa só para estrangeiros, mas para todos os interessados. É mais fácil com estrangeiros, a maior parte dos locais não fala inglês, o que é um problema. Mas a nossa ideia é que não seja só para estrangeiros, mas que seja um espaço aberto para concertos, conferências, e outras coisas”, refere o músico alemão. Nesta altura, as mudanças já se veem bem – há obras feitas e muitas ainda em curso, há uma horta, há um jardim de mandala e uma estufa circular onde Johannes deixou sangue, suor e lágrimas. Tem uma arquitetura de estrutura recíproca em madeira, na qual as traves são colocadas de forma a ampararem-se mutuamente, num circuito fechado, sem precisar de pregos. Ficou um lindo edifício, mas o músico nunca vai esquecer as vezes que a estrutura caiu e foi preciso montar novamente. “Acho que nunca mais vou fazer uma coisa daquelas na vida!”, diz, entre risos. 

Chegaram ao grupo Pumpkin People através de amigos, e Johannes destaca as ideias de Liz “para fazer coisas diferentes”. Para ele, estar no grupo facilita a divulgação de concertos e workshops, e a angariação de ajudas e dicas. “É bom ter contacto com pessoas que também começaram um projeto novo ou estão na mesma fase do projeto. É uma coisa boa poder pedir ajuda ou pedir materiais, ou uma ideia, seja o que for”, refere Johannes, que adorou a ceia de Natal em que a comunidade se reuniu. 

“Toda a gente levou a sua comida e juntaram-se tantas culturas”, recorda o alemão que trouxe mais cinco habitantes para o Marco de Canaveses. No dia em que publicamos esta reportagem, é provável que a comunidade Pumpkin People tenha ultrapassado a centena de membros. Se assim for, podemos esperar que a troca de mensagens seja fervilhante: é que os fundadores Liz, Diogo e Zuzzana estão determinados a juntar toda a tribo e pôr um drone a voar para tirar uma fotografia de grupo no meio do lugar que todos amam, a Serra da Aboboreira.

Flor do Tâmega
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