A fachada pintada de fresco do Cine-Teatro de Amarante destaca-se no horizonte da margem esquerda do Tâmega, e foram já muitos aqueles que assistiram a concertos na sala que estreou no fim-de-semana de 23 e 24 de setembro. A Câmara, dona e programadora do equipamento, destaca as virtudes técnicas e o potencial de agenda mais diversa e regular. À boleia deste ícone renascido, fomos sentir o pulso da cultura que se faz hoje em Amarante, com alguns dos seus promotores a deixarem ideias para o Cine-Teatro.
Desde os anos de 1980 que Amarante vivia sem Cine-Teatro, mas Manuel Carvalho lembra-se de encher a barriga de cinema entre essa sala e a do Cinema Teixeira de Pascoaes. “Lembro-me de ir à tarde ver um filme a um, e de ir à noite ver outro filme ao outro”, conta. Os centros comerciais, o advento das cassetes de vídeo e do DVD foram ditando o encerramento ou a decadência de Cine-Teatros e cinemas de rua em muitas cidades, tal como aconteceu em Amarante.
Nos dias de hoje, são as plataformas de streaming a prender as pessoas ao seu ecrã doméstico. “Para um cinéfilo, a experiência não tem nada a ver, não é nada a mesma coisa que ver um filme com um projetor e com um envolvimento sonoro que se tem numa sala de cinema”, refere. No início dos anos de 1990, os jovens cinéfilos locais, entre eles Manuel, não se conformaram e criaram o Cineclube de Amarante, que hoje conta com um equipamento moderno, que garante projeções de qualidade na sala do cinema Teixeira de Pascoaes.
Manuel continua na direção (é o presidente) e a sentar-se no cinema Teixeira de Pascoaes quase todas as sextas-feiras. Na última sexta, passou o filme de animação “Os demónios do meu avô”, do realizador Nuno Beato. Na anterior, passara a comédia “O sol do futuro”, do realizador italiano Nani Moretti, que fora estreia nacional apenas três semanas antes. E este é o tipo de filmes em que se pode ver a sala do Teixeira de Pascoaes quase duplicar a lotação habitual de 30 a 40 pessoas.
É nestas apostas do cartaz, que vai entremeando com muitas outras, incluindo um ou outro “blockbuster” (como “Oppenheimer”, de Christopher Nolan, que passou no início de outubro), que se realiza a missão original do cineclube: “a exibição de filmes de qualidade, numa seleção eclética de obras provenientes de diversas cinematografias, procurando mostrar o melhor cinema que se faz na atualidade, bem como clássicos do cinema de diferentes épocas”.
Neste caminho, há ciclos de cinema que acompanham datas especiais e ainda convidados, cineastas ou não, para conversar sobre o filme no final. “Somos a única instituição a programar cinema regular em Amarante desde 1995. E a importância do que fazemos é isso mesmo – a regularidade, por contraponto ao festival, que é um momento, uma semana de festa. A dificuldade está em programar o ano todo”, assinala.
Ser o Cineclube a programar, de vez em quando, para a sala do Cine-Teatro é algo que Manuel encara com naturalidade – trata-se, afinal, de fazer aquilo que o cineclube faz há 28 anos, só que numa sala com muito mais conforto e com 386 lugares disponíveis. É isso que espera, por exemplo, para a estreia em Amarante d´“A Sibila” (o filme de Eduardo Martins inspirada no romance homónimo da escritora amarantina Agustina Bessa-Luís), numa iniciativa que está a ser preparada em conjunto com a Câmara Municipal. “Há certos filmes, como este, que todos ganhamos em levar ao Cine-Teatro”, sublinha.
Enquanto isso, admite que gostaria de ver os amarantinos mais empolgados com o seu cineclube, que lhes proporciona sessões semanais com bilhetes a 3 euros ou, caso se tornem sócios, uma mensalidade de 4 euros. “O cineclube não se limita a ter uma programação de qualidade. Faz ciclos, liga-se a datas, faz desafios e faz parcerias com outras instituições”, elenca o diretor. No dia 17 de dezembro, destaca Manuel Carvalho, o Cineclube vai exibir curtas-metragens de autores amarantinos, selecionadas através de uma chamada aberta de filmes, alinhada com “O dia mais curto” – uma celebração nacional do género curta-metragem lançada em 2013, tendo a Agência da Curta Metragem e o Festival de Vila do Conde como eixos.
É uma forma de convidar a cidade a fazer e apresentar cinema que o Cineclube gostaria de ver, de alguma forma, devolvida em apoio. “A sociedade civil também tem que vir ter um bocadinho connosco”, assinala. E é sobretudo cativar o público que Manuel Carvalho anseia – razão pela qual gostaria de ver melhoradas as condições do Cinema Teixeira de Pascoaes, que a sua associação ocupa por acordo com a Autarquia. “As pessoas têm alguma dificuldade em ir lá, o sítio não é bonito e precisava de ter condições melhores de limpeza e de gestão do condomínio”, refere.
Centro Cultural sugere gestão em rede
Ter o cineclube e os outros operadores locais como parceiros de programação seria a melhor estratégia, defende João Francisco Laranjeira, presidente do Centro Cultural de Amarante (CCA) Maria Amélia Laranjeira, onde funciona o Conservatório e se ministra formação e ensino oficial artístico desde a idade pré-escolar até ao 12º ano. “O Cine-Teatro é um equipamento muito importante para a cidade, foi um grande investimento feito pelo município e, por essa razão, devia ser acompanhado por uma ligação muito maior e muito mais estreita com os operadores culturais da cidade. Porque são eles que têm vindo a formar públicos ao longo dos anos e podem também garantir uma oferta complementar, sem mais custos”, declarou o responsável.
Numa analogia com o setor social do concelho, que trabalha em rede, trata-se de “criar uma entidade que faça a integração das atividades que são válidas e podem marcar a diferença, integradas na agenda municipal”, ilustra o diretor do CCA, que é a favor de um planeamento que combine artistas consagrados com “os artistas e os operadores que já estão no terreno em Amarante”. “Se essa rede começar a funcionar, as pessoas vão começar a perceber que fazem parte de um conjunto que é a cidade”, sublinha.
Entrelaçar a sua atividade de formação com o caráter do território é a forma do CCA contribuir para a agenda cultural. A instituição promove dois festivais internacionais de música, assentes na valorização do património histórico e cultural, e ainda um festival de percussão. No caso do Festival Internacional de Música Antiga, cuja segunda edição se realizou entre setembro e outubro passados, há concertos de música de épocas passadas, do Renascimento ao Barroco, apresentados em igrejas e outros espaços monumentais. Os órgãos de tubos das igrejas entram nos concertos, assim como outros instrumentos pouco conhecidos do público em geral.
Mais antigo é o Festival Internacional de Guitarra de Amarante (FIGA), que se realizou em julho pela sexta vez, combinando concertos com masterclasses, também no intuito de divulgar este instrumento (e o trabalho dos alunos do Conservatório amarantino) ao público. O Festival de Percussão tem como propósito a troca de experiências entre estudantes de música. Depois de, nos últimos 40 anos, se ter empenhado em “dar uma resposta à cidade” na área do ensino artístico, o CCA prepara-se para criar outro equipamento para fruição pública na rua Teixeira de Vasconcelos, no centro de Amarante. Falaremos desse projeto mais adiante e, por agora, vamos bater à porta daquela que será a sua vizinha da frente: a Associação Gatilho, que acaba de cumprir 10 anos a trabalhar, como o seu nome indica, no desenvolvimento artístico cultural local.
Um Gatilho para agitar a cultura
Há dez anos, a Associação Gatilho nascia para consolidar a presença de um movimento independente que, depois de ter começado por publicar uma fanzine, estava empenhado em criar “uma cultura alternativa, ousada e enriquecedora”. Promove concertos, performances, exposições; organiza a FLIP – Mostra Internacional de Animação e o festival UMAMI – Arte e Culturas do Mundo; e dá ainda cursos de pintura, escultura, ilustração, vídeo arte e fotografia. Quando se começa a fazer perguntas sobre cultura em Amarante, é a porta onde todos nos dizem ser indispensável ir bater.
Para dentro dessa famosa Porta 43 da rua Teixeira de Vasconcelos, foi possível ver uma das exposições que assinalaram, ao longo do mês de outubro, a celebração dos dez anos da Gatilho. “Dialéticas” mostrou trabalhos dos artistas plásticos Joana Castro e Diogo Cardoso, que são também formadores na Academia de Produção Cultural e Artística. Esta academia, que é frequentada por cerca de 40 alunos, está na base de outra exposição que marca os dez anos da associação. Chama-se “Reflexos”, conta com cerca de cem obras de alunos e ex-alunos, de várias idades, e pode ser ainda ser visitada até dia 4 de novembro, na antiga Fábrica dos Matias.
Foi também lá que teve lugar o último concerto da festa dos 10 anos, com o músico e cantor Daniel Catarino a apresentar o seu último disco, Megafauna, dia 28 de outubro. No dia 13, atuara a “one man band” Electric Man na Porta 43. “Fazia falta agitar a cultura amarantina. Este tipo de coisas mais fora de uma linha tradicional que fazemos, a atingir outro tipo de públicos não existia aqui”, refere Gilberto Pinto enquanto nos conduz pela mostra “Reflexos”.
As dezenas de pinturas e desenhos de todas as formas e cores evidenciam tanto o impacto da Academia da Gatilho no despontar artístico da comunidade, como o potencial da antiga Fábrica dos Matias – uma antiga unidade metalomecânica adquirida pela Autarquia, em 2019, para ser requalificada como centro cultural. Gilberto ajeita um e outro quadro e está claramente satisfeito por ser possível programar para aquele espaço, ainda por requalificar, porque permite uma expansão diferente.
Mas falar dos dez anos de atividade da Gatilho é contar uma história que combina muitos sonhos com muitas lutas. “Quando a Gatilho apareceu, era necessária. Havia muito pouco a realizar-se aqui, além da agenda municipal, que praticamente só se fazia nos meses de verão e no Natal. O nosso objetivo era combater a falta de agenda nos meses de inverno e sempre fizemos muita coisa no inverno”, assinala.
O fundador da Gatilho não esconde algumas mágoas, como aquelas de programar concertos que, enchendo grandes salas noutras cidades – como foi o caso da cantora Lince e do guitarrista Grutera – tiveram seis pessoas na sala da Porta 43. “Dói, dói mesmo como o caraças. Houve alturas em que pensava em desistir”, desabafa. “Aqui em Amarante, é difícil criar público. Termos um concerto com 80 ou 90 pessoas já é bom, é raro termos lotação esgotada. No cinema, ainda é mais baixa”, refere.
Mas aqueles artistas atuaram na mesma e a Gatilho perseverou, mesmo apercebendo-se que o seu trabalho de programar “fora da caixa” passa ao lado de muita gente. “Já tivemos aqui Aníbal Zola duas vezes e tivemos Noiserv”, recorda Gilberto. De agora em diante, programas como o concerto de Noiserv, que chamam mais público, podem ter outro tipo de abordagem: “Se já tivéssemos o Cine-Teatro, podíamos ter lá feito esse concerto”, sublinha.
Com a Academia em mudanças, e a agenda de inverno em andamento, Gilberto Pinto não se demora naquilo que podia ter sido e não foi. O movimento que, há dez anos, premiu este gatilho, prossegue. De 15 a 17 de dezembro, a Gatilho promove mais uma edição do FLIP – Mostra de Cinema de Animação, este ano focada no cinema fora da Europa e do Ocidente em geral, exibindo trabalhos de cineastas lusófonos, sul-americanos e africanos, num propósito de “descolonização intelectual”. Em janeiro, ainda no rasto do aniversário, há dois concertos (dias 27 e 28) com a banda The Smokestackers. E, entre 22 e 24 de fevereiro, acontece mais uma edição do Festival UMAMI – Arte e Culturas do Mundo.
Uma sala de espetáculos para todo o ano
Interpelando alguns amarantinos no centro histórico, perto da igreja de S. Gonçalo, todos demonstram estar empolgados com a reabertura do Cine-Teatro, mas nenhuma das pessoas com quem falámos fora assistir aos primeiros concertos. A comerciante Maria da Luz Poças é uma delas, embora se sinta inconformada por não ter conseguido ir ver o concerto de Áurea – um espetáculo gratuito que inaugurou, no dia 29 de setembro, uma das valências do novo edifício, o The President’s Club Piano Bar e Vinoteca. “Se ela voltar, vou tentar ir, gostava muito de a ver ao vivo”, afiança.
“É uma mais-valia termos um sítio para espetáculos em Amarante”, declara a comerciante, dona de uma frutaria no centro da cidade e com paixão por frequentar espaços culturais. “Já vi o Museu de Souza-Cardoso e o Museu de Arte Sacra e fui algumas vezes à Casa da Granja, são lugares que gosto muito de ver ao fim de semana, porque há sempre alguma coisa que aprendemos”, refere a comerciante, de 53 anos
Maria da Luz não tem acompanhado a agenda, mas pelo palco do Cine-Teatro já passaram, nas noites de estreia, os artistas amarantinos Marco Rodrigues e Noble; e ainda o Rui Fernandes Quarteto, com viola amarantina. Também já lá se estreou a Orquestra do Norte, com um concerto com a pianista Taíssa Poliakova Cunha, interpretando o repertório de João Domingos Bomtempo (1809-1847). Na última semana de outubro, estiveram em cena a peça de teatro para crianças “Gira Mundo” do Teatro Quadrilha; e “Insónia”, um espetáculo do bem conhecido ator Fernando Mendes.
O Piano Bar e Vinoteca que vai ser explorado nos próximos oito anos pelo empresário Júlio da Silva (que gere também o restaurante Pobre Tolo, ali perto), tem uma agenda musical própria, que complementará a oferta principal. Essa está totalmente a cargo da Autarquia, que comprou o edifício no ano 2000 e avançou para a reabilitação em 2019, com projeto do arquiteto Carlos Prata. Foi um investimento de 5,5 milhões de euros, cofinanciado pelo FEDER – Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional em 85 por cento. A aposta mexeu também com a estrutura do Departamento Cultural do Município, que é dirigido, desde o verão de 2021, por Rosário Correia Machado, que assumiu essas funções depois de trabalhar mais de vinte anos como diretora da Rota do Românico.
A gestão e programação do Cine-Teatro trouxe mais responsabilidades àqueles que já programavam outros espaços municipais. “Foi criada uma equipa multidisciplinar dentro do Departamento de Cultura, porque os vários equipamentos fizeram também com que tenha havido essa exigência de organização dentro da Câmara”, disse aquela responsável à Flor do Tâmega. Dedicar o primeiro ano de atividade a “ir percebendo as várias dinâmicas do espaço”, a observar as potencialidades dos públicos e a “integrar o espaço com toda a agenda que já é desenvolvida” é o propósito da equipa municipal, que vai, para já, fazer programação ao ritmo trimestral. Pretende-se ainda criar um canal próprio online para a comunicação cultural.
A necessidade de preencher os meses de inverno, tal como a sentiu a Associação Gatilho, é reconhecida por Rosário Machado como uma das mais-valias do Cine-Teatro, embora ele represente mais do que isso, até pelo potencial de captação de públicos que vão mais além dos limites do concelho. “A cultura é e tem vindo a ser uma das grandes prioridades [do Município], porque faz parte da estratégia assumida em relação à importância que Amarante tem e teve ao longo do tempo”, salienta a responsável pelo Departamento de Cultura.
O Cine-Teatro terá capacidade de realizar eventos com uma escala diferente e com condições técnicas de maior envergadura, o que não significa que comece a centralizar toda a cultura da cidade, ressalva Rosário Machado. “A ideia não é o Cine-Teatro vir, de repente, ocupar todo o espaço cultural. É ser mais um equipamento e um elemento da dinâmica da oferta cultural da cidade”, refere, dando como exemplo os concertos orquestrais que podem, agora, deixar de acontecer exclusivamente nas igrejas; os espetáculos de teatro e dança, que contam com um palco muito bem equipado; e todos os eventos que esperavam pelo tempo de verão para se poderem realizar.
“Ao nível da programação, Amarante é um município extremamente dinâmico, mas fazia falta, aqui, um equipamento que permitisse ter um espaço de excelência. Este não é um simples auditório e permite-nos ter uma programação que contrarie a sazonalidade. Estávamos muito limitados e estamos em condições de apresentar uma oferta cultural o ano inteiro e que não conseguíamos ter. Mas é um complemento, porque os outros atores culturais do território continuam”, refere Rosário Machado, sublinhando a necessidade de avançar de forma cautelosa pela auscultação das já referidas dinâmicas existentes. “Há todo um processo de construção da programação global que tem que ser feita” e “uma constelação que leva o seu tempo a funcionar bem”, assinala.
Mesmo sem saber quando se irá sentar num dos 386 lugares do auditório, Maria da Luz espera ver o novo edifício de portas abertas por muitos anos. “O que desejo primeiro é que o Cine-Teatro não morra. Já falei com pessoas que foram ver e gostaram muito”, sublinhou. Não é o caso de Ana Reis, lojista de 26 anos, que mesmo achando que “o Cine-Teatro pode ser muito bom para a cidade”, prefere ir ver filmes ao Cinemax, a Penafiel, algo que considera mais atrativo para a sua geração. Mas não põe de lado ir assistir a outro tipo de eventos: “Teatro era algo interessante de ver, não é algo de muito frequente por aqui”, assinala.
Companhia de teatro sonha com mais palco
Se Renato Pinheiro, dirigente da companhia amadora T´Amaranto, a ouvisse, talvez lhe pudesse contar alguns dos momentos da longa história de 23 anos do grupo – que ficou com o nome do festival anual de teatro da cidade, onde marca sempre presença, mesmo que não participe na sua organização. O festival T´Amaranto já teve vinte edições e, na última delas, em julho, a companhia apresentou a comédia “As casadas solteiras”, que levou depois em itinerância. O grupo formou-se depois de uma oficina de teatro realizada em parceria com a Autarquia e a companhia Filandorra, tendo-se apresentado pela primeira vez com a peça “As mulheres de Atenas” (Augusto Boal).
“Tinha muita gente e alguns acabaram por ficar; eram 22 pessoas e agora somos onze, entre atores e equipa técnica”, refere Renato, que, embora sentindo o carinho do público, alimenta o sonho de conseguir apresentar produções teatrais fora do tempo de verão e da companhia “ser mais procurada”. “Gostaríamos de ter dois espetáculos no inverno, porque no inverno não há nada. As pessoas não foram habituadas a ter atividades de teatro no inverno”, diz.
A reabertura do Cine-Teatro dá esperança ao dirigente do T´Amaranto, que expressa gratidão pelo apoio municipal à companhia – que lhes cede o local de ensaios e lhes garante um subsídio anual –, mas espera poder ocupar regularmente a nova sala. “Agora, com o Cine-Teatro, acho que [a Câmara] tem que apostar mais nos grupos da casa”, diz Renato Pinheiro. Experiência não falta à companhia, que conta com mais de 30 produções, de autores nacionais e internacionais, e outras apresentações em alturas festivas, nomeadamente o Natal, muitas delas em escolas.
Até ao final do ano, há pelo menos três espetáculos de teatro agendados para o Cine-Teatro, de acordo com o programa divulgado esta semana pela Câmara Municipal. No dia 19 de novembro, às 16 horas, sobe ao palco a peça “A Tempestade”, pela Jangada Teatro, a partir da releitura criativa da obra de Ana Luísa Amaral (bilhetes a 3 euros). No primeiro dia de dezembro, também às 16 horas, poderá ver-se o musical para crianças (maiores de 3 anos) “Aladino”, pela Companhia Rituais dell Arte, com encenação de Miguel Ruivo Duarte (bilhetes a 7,5€). Finalmente, no dia 7 de dezembro, às 21.30 horas, estará em cena a peça “Ruy, a História Devida” com Ruy de Carvalho e Luís Pacheco, com encenação de Paulo Sousa Costa e texto de Paulo Coelho (bilhetes a 15 euros).
Um palco já testado pela Orquestra do Norte
A Orquestra do Norte foi o coletivo que mais se familiarizou com o Cine-Teatro, tendo subido ao palco na inauguração e para o primeiro concerto de temporada, com uma solista convidada. “Pudemos executar um concerto para piano e orquestra numa boa sala, com excelente acústica, o que não era possível nos últimos anos”, disse o maestro Fernando Marinho, satisfeito por poder planear a programação regular em Amarante “num espaço nobre” sem as limitações de outrora. Até agora, esta orquestra regional com sede em Amarante há mais de 20 anos, tem realizado a maior parte dos concertos de temporada na igreja de S. Gonçalo ou, no verão, nos claustros dos Paços do Concelho.
A diretora municipal de Cultura salientou as vantagens de programar para um “espaço civil”, algo que Fernando Marinho destaca também: “Nem sempre é possível realizar todos os concertos na igreja”, refere. A Orquestra do Norte pode agora preparar muito mais concertos fora do repertório sacro, o que vai trazer novas experiências para um público que, afiança este responsável, está consolidado em Amarante, podendo contar agora uma sala que permite “um concerto irrepreensível, estando bem sentado, com boa temperatura e boa visibilidade”.
“Aqui temos um público para música clássica, para concertos orquestrais”, diz Fernando Marinho, referindo-se aos dois concertos mensais que a orquestra apresenta na cidade – um de temporada (que passará a ser, por regra, no Cine-Teatro), e outro no museu de Souza-Cardoso, com grupos mais pequenos, de carácter mais camerístico. Assinala ainda a temporada pedagógica desenvolvida no município, com a orquestra a ir às escolas nesse intuito de criar públicos. São estes os elementos daquela que descreve como “uma relação umbilical com Amarante”.
Até ao dia 1 de janeiro, a Orquestra do Norte vai dar mais três concertos no Cine-Teatro. No próximo dia 11 de novembro, apresenta “Mozart Alla Turca”, tendo como solista convidada a violinista arménia Lia Yeranosyan (21.30 horas, bilhetes a 5 euros). No dia 16 de dezembro, o concerto de temporada é necessariamente alusivo ao Natal, embora, este ano, seja possível realizá-lo com outra temática. “Este concerto costuma acontecer na igreja e fazíamos algo mais coral e mais sacro”, explica o maestro. Desta vez, o concerto natalício é “Um Conto de Natal de Charles Dickens”, com direção artística de Miguel Sepúlveda (21.30 horas, bilhetes a 5 euros). O concerto de Ano Novo “A Tradição Vienense” está marcado para o dia 1 de janeiro, às 16h, com bilhetes a 5 euros.
Por dentro do Cine-Teatro: da torre de cena ao fosso que ficou de fora
A fachada do Cine-Teatro tem um brilho que captura o olhar e é de apreciar esse efeito na sua fachada algo austera, cujo traçado foi preservado pelo projeto do arquiteto Carlos Prata. “Foi a única coisa original que ficou, o resto é tudo novo”, sublinha Rosário Machado, que conduziu a nossa visita guiada por todo o espaço – uma visita que a Autarquia pretende, no futuro, consolidar como uma atividade disponível para o público em geral.
O novo auditório tem 386 lugares e a sua posição foi invertida em relação ao auditório original do edifício, que abriu em 1947 e se manteve em atividade até à década de 1980. Logo à entrada, fica a bilheteira (que funciona de terça a domingo, das 10h às 13.30h e das 14.30h às 18h), sendo possível também comprar bilhetes online em cineteatroamarante.bol.pt.
Lá dentro, o auditório forrado a madeira orienta-se para um palco com 13 metros de largura e 16 metros de profundidade, do qual só mesmo uma visita pelos bastidores permite apreender os segredos. Da torre cénica pendem cortinas e cortinas de aparatos técnicos e existe uma concha acústica, de montagem demorada, que foi estreada num concerto da Orquestra do Norte. Essa torre, que será uma das passagens das futuras visitas guiadas, poderá muito bem ser o ponto preferido delas para muita gente.
Caminhar sobre o seu piso em gradil de ferro é como entrar no filme “Matrix” ou então, pelo menos, compreender a parte destemida do trabalho dos técnicos de cena. É a partir dali, mais de 20 metros acima do solo, a pisar um chão de ferro aos quadradinhos, que se manobra a maquinaria motorizada e manual de apoio à cena – o palco tem 32 sistemas motorizados de velocidade variável e sistemas de guincho com capacidade até uma tonelada cada um para suspender todo o tipo de equipamentos. Mas há outra curiosa vista do palco que se pode ter, debaixo dos pés. O subpalco, que fica por baixo da estrutura modular do palco, tem um grande potencial de utilização.
Os bastidores são de um minimalismo em tons neutros, e a sua decoração é precisamente a ausência dela – é uma zona funcional, que nada tem a ver com os aconchegantes tons de castanho caramelo e madeira do auditório. Porém, ali pressente-se o pulsar de toda a vida, energia e frenesim que terá que circular naqueles corredores e camarins para que se leve um bocadinho de sonho à cena. É provável que, em certos momentos, estes corredores de nuas paredes brancas e chão escuro sejam um lugar bem colorido e frenético.
Há cinco camarins, entre os coletivos e individuais, uma sala de ensaios, vestiários, e uma série de salas técnicas que, em conjunto com as outras valências – auditório, piano bar e outros espaços, preenchem a área total de nove mil metros quadrados. A Autarquia divulgou esta e outras contabilidades de materiais utilizados nesta obra de 5,5 milhões de euros: 120 toneladas de ferro, 22 km de cabos elétricos e de telecomunicações, 42 km de cabos para mecânica de cena e 10 km de cabos de aço para suspensão das varas (valores em km aproximados). E caso alguém não saiba qual é a sua porta, pode estar metido em trabalhos: ao todo, o edifício tem 175 delas.
Há, porém, um elemento que ficou de fora numa reformulação do projeto – com a justificação de reduzir os custos em cerca de 30% – e que trará limitações à programação. Trata-se do fosso de orquestra, que foi “abandonado à partida por razões técnicas e orçamentais”, considerando tratar-se de uma sala de dimensão média e ser necessário fazer opções, justificou Rosário Machado. “O palco permite quase todo o tipo de produções artísticas, com exceção da ópera”, disse, a não ser que seja possível a orquestra estar em palco.
O diretor artístico da Orquestra do Norte não estava ligado ao coletivo de músicos quando esta decisão foi tomada, na fase inicial do processo. Prefere destacar “a concha acústica de elevada qualidade e a excelente acústica proporcionada enquanto sala de concertos”, que já pode experimentar na direção da orquestra no Cine-Teatro. Porém, quando questionado pela Flor do Tâmega sobre a sua opinião especializada mesmo sem ter sido consultado neste processo em particular, Fernando Marinho declarou que “a ausência do fosso de orquestra cria limitações ao nível de determinado tipo de espetáculos que não poderão ser vivenciados na sua plenitude: ópera, bailado, musical, mas que seguramente serão compensados de outra forma”.
Há um movimento perpétuo
entre antigos e novos criadores
O rio Tâmega a passar sinuoso, a ponte e o mosteiro de pedra, uma doçaria delicada… e um grupo de intelectuais e artistas que deixaram marcas na cultura nacional. Evocar Amarante vai mais além da imagem da cidade graciosa e solene – o território tem uma herança de criação humana que todos reconhecem. Mesmo aqueles que nunca abriram um livro de Agustina Bessa-Luís, nem leram um poema de Teixeira de Pascoaes ou do Abade de Jazente, desconhecem as ideias de António Cândido e nunca olharam para um quadro de Amadeo de Souza-Cardoso ou para uma fotografia de Eduardo Teixeira Pinto.
Levar os portugueses a conhecer estes amarantinos ilustres e as suas obras é importante, mas muito mais importante é levá-los ao conhecimento dos seus conterrâneos. “Amarante é uma terra de cultura, mas não faz públicos de cultura”, aponta Pedro Barros, presidente do Centro de Estudos Amarantinos (CEAmt). Esta associação, emanada da sociedade civil, estabeleceu-se em 2018 com a missão de investigar, divulgar e promover temas da cultura amarantina. “Há uma tentativa de centralização política de todas as instituições culturais e uma dificuldade imensa de criação de públicos, cada um faz para seu canto”, analisa aquele responsável, concluindo que “é muito difícil manter um projeto cultural em Amarante”.
Tal como outras entidades culturais ouvidas nesta reportagem da Flor do Tâmega, o CEAmt percebeu que a dificuldade em cativar públicos se começa por enfrentar nas escolas – a formação de públicos, a divulgação das obras de figuras amarantinas e a criação da biblioteca de estudos amarantinos são os seus três projetos principais. Uma coisa é saber alguns nomes de cor, outra é conhecer quem foram realmente Agustina ou Pascoaes.
Ao trabalhar na divulgação cultural nas escolas do concelho, Pedro Barros percebeu que “os jovens não têm noção da importância e da relevância do seu enorme legado em termos culturais” e que “já ouviram falar dos nomes, mas depois não conseguem nenhum título e não leram”. A estratégia tem sido aproximar estes ilustres, muitas vezes representados de uma forma austera, da realidade dos alunos. No ano letivo passado, o centro trabalhou com a escola profissional EPALC, onde Pedro Barros pode dizer a um aluno de Figueiró que essa era a terra natal de Carlos Babo, e explicar quem foi este jurista, escritor e republicano.
No âmbito deste projeto, realizam-se sessões e tertúlias, que não cativam todos da mesma forma, mas que conseguem sempre levar uma mão cheia de alunos a apaixonar-se verdadeiramente pela obra de algum ilustre amarantino – e que continuam a querer saber mais. “Acabo por amarrá-los à responsabilidade de saber que, naquele lugar, nasceu uma personalidade política, académica, empresarial, cultural que escreveu livros e que foi importante para isto e para aquilo”, sublinha o presidente do CEAmt, que tem uma equipa nesta missão com os públicos em idade escolar.
Entre os 238 autores com obras conhecidas desde o século XVI até ao presente, haverá sempre alguém para inspirar um estudante de qualquer ponto do concelho. E não só os estudantes, mas todos aqueles, dentro e fora do território, interessados em saber mais, por exemplo, sobre o conselheiro António Cândido, a quem o escritor Camilo Castelo Branco chamou “a águia do Marão”. O Centro está atualmente dedicado à promoção do livro “Discursos intemporais” sobre este homem notável que fundou a moderna Ciência Política portuguesa, por ocasião do centenário da sua morte – há iniciativas em parceria com a Procuradoria-Geral da República e também com a Câmara do Porto onde, no próximo dia 9 de novembro, será apresentada aquela obra.
No passado mês de outubro, foi lançada no Centro Cultural de Amarante a segunda obra da biblioteca editorial do CEAmt – “A face romântica da tuberculose”, do médico Ramalho de Almeida. Em Janeiro, foi lançado o livro “Breve Tratado da Vida e Milagres de S. Gonçalo”, da autoria de Frei Manuel Pereira.
Serigrafia, livros e educação ambiental
Num recanto da rua Miguel Pinto Martins, há um casal de amarantinos que trabalha também com paixão por este legado, transportando-o para o presente de um modo muito próprio – em particular, promovendo a serigrafia e a ilustração. Desde 2017 que a Officina Noctua se instalou ali, mas nestes anos todos Nuno Ribeiro e Verena Basto continuam a sentir a relutância das pessoas em entrar e percorrer o seu espaço – uma loja-oficina repleta de objetos e obras de arte, uma estante com livros usados e uma decoração feita de encantadores móveis antigos. É um lugar excêntrico, informal e acolhedor, onde se têm produzido algumas obras assinaláveis no intuito de “valorizar os autores, os novos e os emergentes”.
As edições da Officina Noctua combinam um grande trabalho artístico e feito à mão, com conteúdos de grande interesse cultural e sempre com a participação dos seus promotores – Nuno é designer e Vera é artista plástica – e ainda de artistas emergentes de Amarante. Em seis anos, lançaram várias obras com este caráter, começando pelos “XX Dessins do século XXI” (2018), inspirada no álbum “XX Dessins” de Amadeo de Souza-Cardoso (1912).
Vinte artistas amarantinos foram desafiados a reinterpretar cada um dos desenhos, que deram origem a uma coleção de serigrafias em forma de postal. “Era uma forma de homenagear um dos maiores vultos da arte em Portugal, no ano em se assinalou o centenário do seu desaparecimento [o artista viveu entre 1887 e 1918] e, por outro lado, uma forma de dar a conhecer ao público o trabalho que os artistas desta cidade desenvolvem nos dias de hoje”, explicou Nuno Ribeiro.
Em 2019, lançaram o livro “Escura Flama”, a partir de dez excertos do livro “O Susto”, de Agustina Bessa-Luís, uma coleção de dez serigrafias de dez artistas e textos do escritor Jorge Gonçalves – mais uma obra cem por cento amarantina, com uma edição limitada de 50 exemplares. Seguiu-se, nesta linha, “O Ritmo Desumano do Mar”, um conjunto de serigrafias baseadas no livro “O Ressentimento de um Ocidental”, de Alexandre Pinheiro Torres.
Em setembro do ano passado, lançaram (com uma edição mais luxuosa, com trabalho artesanal, e outra mais acessível) uma seleção de poemas de Heiner Müller, compilada e traduzida por Adolfo Luxúria Canibal, da banda Mão Morta. Estão ali reunidos os 19 poemas do espetáculo “Müller No Hotel Hessischer Hof” produzido pelos Mão Morta, mais 18 poemas; e o texto é ilustrado por desenhos da autoria de José Pereira. A edição de luxo tem uma capa em serigrafia e encadernação manual. No ano passado, lançaram o livro “Tamem Digo. Uma História de Migrações”, do escritor Jorge Pinto, com ilustrações de Júlia Costa, que entrou na lista de sugestões do Plano Nacional de Leitura.
O projeto em curso é a reedição dos poemas do Abade de Jazente, que datam do século XVIII. Na loja-oficina, onde ambos trabalham, há um bocadinho de todas as suas paixões e frentes de atividade, com destaque para a serigrafia. “A ideia era juntar as duas coisas, o meu trabalho como designer e o da Vera como artista plástica; achamos interessante trabalhar a serigrafia para fazer a ponte entre as duas áreas”, conta Nuno. Um dos projetos permanentes é o lançamento, a cada dois anos, de um poster de serigrafia de um artista diferente, a partir de uma chamada de trabalhos. E vai havendo também uma agenda de workshops.
O designer, que já foi livreiro, também quis ter livros, e a paixão pela música trouxe os discos… e depois chegaram os móveis antigos, que às vezes restauram. E ainda as serigrafias e outras obras de vários artistas que ali expõem, incluindo sacos e t-shirts, cianotipia decorativa… “Há mesmo muita gente a trabalhar em artes visuais em Amarante”, assinala Nuno, que atribui essa “movida” à influência do curso de Artes Visuais na escola secundária, criado há 30 anos. Em particular, ao carisma do professor e pintor Mário Peixoto, cujas obras também se podem encontrar ali na Noctua.
Durante a pandemia, o casal dedicou-se mais a outra paixão – a observação de aves -, que deu origem a mais um projeto, com Vera e Nuno a trabalharem também educação ambiental nas escolas, sobre o tema do impacto humano nos habitats. O nome do seu espaço, aliás, é uma homenagem ao mocho, símbolo do conhecimento, que em latim se chama noctua. “O espaço começou a ficar pequeno para tantos projetos”, diz Nuno, o que não impede que esteja sempre aberto a quem o quiser conhecer. “É mais fácil as pessoas de fora entrarem aqui do que as de Amarante. Talvez as pessoas se sintam intimidadas, ou pensem que isto é só um local de trabalho, por não ter montra. Mas a porta está aberta a todos os que queiram ver, mesmo sem terem possibilidades de adquirir”, sublinha Nuno.
Uma polaca fascinada por Pascoaes
Descendo pela mesma rua, quando ela já tem o nome de Teixeira de Vasconcelos, encontrámos a pintora e galerista Zuzanna Hope a falar da mesma relutância das pessoas em entrar na sua Muso Art Gallery & Studio. Ela trabalha no cavalete colocado de costas para rua e, por vezes, os passantes espreitam. “As pessoas param e pedem desculpa por estar a incomodar, ou perguntam se é de entrada livre. Entram e ficam muito agradecidas e nunca pensei que fossem pensar isso, dizem ‘obrigada por estar a fazer isto por Amarante’”, conta a artista, que declara apreciar todas as visitas e já se deliciou com crianças que ali entraram: “Foi fantástico, percorreram a galeria, correram tudo, fizeram perguntas”.
Zuzanna, que nasceu na Polónia, também está grata a Amarante, cidade pela qual se apaixonou e onde está a realizar os seus sonhos: viver tranquilamente num território ligado à natureza, com uma cultura inspiradora, dedicada ao seu trabalho e à curadoria da sua galeria internacional. Ali, tem exposições de artistas nacionais e internacionais, que visitam a cidade nas inaugurações e preocupa-se em dar oportunidade de exibição. Tem pintura, escultura, cerâmica. “Lembro-me quão difícil foi para mim chegar às galerias, por isso estou aberta a novos artistas”, refere. Também dá workshops e está a planear uma agenda de retiros de arte na natureza.
Chegou à cidade depois de se ter mudado de Londres para o Porto, onde abriu uma galeria com outros sócios, a Division Zero. Não demorou muito até decidir instalar-se em Amarante, e foi Teixeira de Pascoaes quem guiou os seus passos. “Comecei a descobrir mais sobre Amarante e fui-me cruzando com Teixeira de Pascoaes, senti uma ligação profunda e comecei a estudar português para traduzir os poemas dele”, contou à Flor do Tâmega. Quis instalar a sua galeria na casa onde o escritor e poeta viveu – conseguiu fazê-lo mesmo na casa em frente e chamou Muso à galeria. “É isso que o Pascoaes é, o meu muso de inspiração”, explica.
Ao mesmo tempo que instalava a galeria, a sua ligação aos poemas ganhou uma nova dimensão. Numa parceria com o Município e a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, lançou uma chamada internacional para a criação de arte visual inspirada num poema de Pascoaes, destinada a artistas portugueses ou estrangeiros. Foi assim que, em 2022, foi lançado “Muse”, o primeiro livro com poemas de Teixeira de Pascoaes traduzidos para inglês, com 30 poemas ilustrados por 21 artistas; e que deu origem também a uma exposição no Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso.
O livro está em destaque na mesa de Zuzanne, cujo trabalho espelha bem a influência da paisagem e das personalidades amarantinas. Há uma pintura dela sobre uma fotografia de Eduardo Teixeira Pinto, outra sobre a talha dourada da igreja de S. Pedro e ainda outra sobre as coloridas gaivotas, com forma de flamingos, onde se pode navegar no Tâmega. É um quadro que causa sempre reações apaixonadas, conta Zuzanne, divertida. “Muitas pessoas daqui acham piroso, mas o kitsch também é arte. Agora odeiam-no, mas daqui a muitos anos é retro e vintage”, assinala. O fotógrafo Eduardo Teixeira Pinto é outra das suas inspirações: “Pinto a Amarante de agora como ele fotografava a Amarante de antigamente”.
300 mil retratos da alma amarantina
Eduardo Teixeira Pinto (1933-2009) fotografou Amarante desde 1950 e as suas fotografias revelam muito sobre as faces, as expressões e os estados de alma da cidade, em dialética com os ritmos da natureza e do mundo ao redor dela. Deixou mais de 300 mil fotografias. Muitas delas parecem pinturas, transmitindo um vagar e uma contemplação de cada momento da vida que impressionam e deixam vontade de ver mais e mais fotografias. Verónica Teixeira Pinto, filha do fotógrafo e guardiã e gestora do seu espólio, refere que há inúmeras possibilidades de criar exposições a partir do seu legado – e as que estão atualmente estruturadas, estão em itinerância.
A exposição “Aos olhos de Eduardo”, com 70 fotos premiadas do fotógrafo, está na estrada na Galiza desde 2014. Está desde setembro passado no Museu de Arte Torrente Ballester, em Ferrol, depois de se ter estreado em Ourense. Verónica é presidente da Associação para a Criação do Museu Eduardo Teixeira Pinto, que tem sede na Casa da Granja, onde promove também uma agenda ligada à fotografia, às artes e à divulgação cultural, incluindo concertos intimistas ou apresentação de livros.
Este ano, vai lá estar uma exposição de fotografia de Filipe Carneiro e, para o ano, poder-se-ão também apreciar mostras dos fotógrafos Luiz Carvalho (Portugal) e Plácido López Rodriguez (Espanha). Em 2024, haverá outros fotógrafos a expor na Casa da Granja, como Júlio de Matos (Portugal) e Wanderson Alves (Brasil); assim como os pintores Cabral Pinto e Aparício Farinha.
A agenda da Casa da Granja desperta muito interesse de quem é de fora de Amarante, salienta Verónica, que diz ter visitantes a chegar de cidades como Coimbra, Lisboa e Porto para ver as exposições. Os da “casa” também acorrem, nos dias de abertura: “Nas inaugurações, está sempre cheio”, diz. Contudo, não se inibe de deixar um reparo sobre o facto de não haver muita correspondência entre o interesse e a frequência, de facto, dos momentos culturais.
“Acho que em Amarante as pessoas gostam de dizer que são muito afetas à cultura, mas depois não participam e não vão, não se interessam. A culpa não é só de um lado ou só do outro. Não basta dizer que vem aí um grande fotógrafo, como o Júlio de Matos, tem que haver um grande trabalho para chegar ao público e motivá-lo. Começa no cartaz, que é a primeira coisa que se vê”, sublinha a dirigente da Associação com sede na Casa da Granja.
Um projeto que está à espera de avançar é o de um livro com fotografias de Eduardo Teixeira Pinto sobre a construção da Ponte Nova. E à espera de um movimento maior está o próprio mote da associação, que “foi criada para negociar com a Câmara a criação do Museu de Fotografia Eduardo Teixeira Pinto”, refere Verónica. O espólio à sua guarda tem mais de 300 mil fotografias, milhares de negativos e muitas máquinas fotográficas. “Enquanto eu achar que há espaço e que isso é possível, não levo o espólio do meu pai para fora”, declara, sublinhando que o seu desejo é fazer “uma doação por tempo indeterminado” a Amarante.
Um novo espaço e uma antiga livraria
A montra chama a atenção pela diversidade de obras, dos clássicos como Teixeira de Pascoaes e Aquilino Ribeiro, até ao mais recente Prémio Nobel da Literatura Jon Fosse e a popular escritora de policiais Camilla Läckberg. A Livraria Zé que, na verdade, é metade papelaria, é o único lugar em Amarante onde se pode ter a sensação de estar num espaço onde existe curadoria de títulos. Bruno Costa herdou o negócio do pai, José Monteiro da Costa, que fundou a casa em 1976 depois de sair da papelaria Tulipa, e esclarece-nos que é só parcialmente assim.
Vai recebendo os títulos das editoras – “Estamos sempre nas mãos delas”, assinala -, que combina com as sugestões de um cliente fiel, o escritor José Gonçalves, e ainda com a sua própria determinação em ter sempre obras de autores amarantinos, incluindo alguns autores mais jovens. Vai tendo sempre as obras de Agustina, que estão a ser reeditadas, assim como as coletâneas de poesia de Teixeira de Pascoaes que uma pequena editora do Porto, a Officium Lectionis, está a lançar, ao ritmo de uma por ano.
“Temos que estar disponíveis para a cultura”, diz Bruno Costa, que sentiu um regresso aos livros nos recentes anos marcados pela pandemia. E que assumiu também que, sendo impossível ganhar a luta com as grandes superfícies, seguiu a estratégia delas e vende os livros sempre com preço de saldo.
Não muito longe desta antiga casa onde se consegue ter sempre páginas amarantinas, vai nascer um novo espaço, por iniciativa do Centro Cultural de Amarante. Segundo revelou à Flor do Tâmega o presidente do Centro Cultural de Amarante (CCA), João Francisco Laranjeira, o projeto foi aprovado pela Direção Geral do Património e aguarda licenciamento. Um investimento de cerca de meio milhão de euros vai criar um auditório de 30 lugares, uma biblioteca temática (que contará com uma grande doação privada), uma pequena loja e ainda um centro de leitura informal. “Será uma biblioteca privada com serviço de biblioteca pública”, referiu aquele responsável. E mais um ponto de paragem para os amarantinos que queiram manter o contacto com o seu legado cultural.
Está previsto que festival Mimo regresse em 2024
A diretora do Departamento Municipal de Cultura de Amarante, Rosário Correia Machado, disse à Flor do Tâmega que “aquilo que se prevê” é o regresso do Festival Mimo em 2024. A responsável – que não trabalhava no município na altura em que este decidiu, por despacho do presidente da Câmara José Luís Gaspar, em maio de 2020, não adjudicar novamente a organização do festival em virtude da pandemia de Covid-19 – não avançou mais nada sobre datas concretas ou outros pormenores do festival. Tanto quanto foi possível apurar, a Autarquia e a empresária Lú Araújo (promotora do Mimo) estão em conversações para que o festival regresse a Amarante.
Recorde-se que o festival Mimo teve quatro edições em Amarante, entre 2016 e 2019, tornando-se, nesses anos, numa espécie de símbolo da cidade. A combinação feliz entre o caráter do festival – que começou no Brasil, em 2004, no intuito de ligar música com património – e a singularidade paisagística e monumental amarantina para isso contribuíram. Nos primeiros meses da pandemia, a Câmara decidiu cancelar o processo de adjudicação em curso para mais duas edições (2020 e 2021), quando a empresária brasileira já tinha feito contratações. Segundo a Amarante Magazine, Lú Araújo referiu não ter conseguido entrar em contacto com a Câmara e apresentou queixa em tribunal, por aquilo que entendeu ser uma “fuga às responsabilidades” por parte da Câmara de Amarante. Em 2022, o festival teve uma edição no Porto.
O Tribunal Central Administrativo do Norte deu provimento à queixa da empresária, levando a Câmara a recorrer para o Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto, que revogou a decisão da primeira instância. Este ano, porém, um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça anulou a decisão do TAF do Porto, com críticas severas à sua fundamentação – alegando, por exemplo, que esta “tem tanto de ilegal como de criativo”.
Desta forma, a Câmara de Amarante foi condenada a reativar o processo de adjudicação de duas edições do festival Mimo, no valor de 1 milhão e cem mil euros. Num comunicado enviado à imprensa, em março, a edilidade justificou que “o processo judicial que existia entre as partes derivou de divergentes interpretações do pacote legislativo de emergência criado no âmbito da pandemia”.
“Tenho a confiança de trabalhar numa entidade de boa fé e de certeza, tenho essa convicção, que nesta questão cultural, agiu no interesse público acima de tudo”, declarou Rosário Machado à Flor do Tâmega. Neste momento, refere, interessa trabalhar “nesta mais-valia muito grande”. “O Mimo tem um conceito muito próprio e a cidade acolheu o Mimo de uma maneira muito intensa, não é mais um festival. A própria cidade incorporou o Mimo, a nossa expectativa, com o regresso do Mimo, é sempre para nós um motivo de alegria por ser um bom projeto”, disse, convicta de que “o que tornou o Mimo especial em Portugal foi o ser em Amarante”. Recorde-se que, na altura em que Amarante celebrava a conquista de ter sido incluída na Rede de Cidades Criativas da UNESCO, em 31 de outubro de 2017, na categoria de Música, o então (e atual) presidente da Câmara, José Luís Gaspar, destacou o papel do Mimo nessa consagração. O autarca salientou que “a cultura, em geral, e a música, em particular, têm sido assumidas como opção estratégica do Município”, dando como exemplos o “o Band’Arte, o Mercado da Música, o Há Fest, os Palcos de Verão e o MIMO Festival”.