O cancelamento da construção da barragem de Fridão permitiu tirar da gaveta o sonho de reabilitar a ponte de arame, que liga as margens do Tâmega entre Rebordelo, Amarante, e Arnóia, em Celorico de Basto. A nova estrutura é uma admirável simbiose entre a engenharia do passado e do presente, que voltará a permitir passar o rio entre dois concelhos e dois distritos.

A empreitada de requalificação de reforço da ponte de arame de Rebordelo/Arnóia (lugar de Lourido) representou dois anos de trabalhos difíceis e muitas peripécias. E ainda duram, já que a ponte será inaugurada apenas em setembro, quando estiverem criadas as condições de estabilização e segurança nos acessos, assim como a sinalética, soube esta semana a Flor do Tâmega, junto da Associação de Municípios do Douro e Tâmega (AMDT), a entidade promotora da obra. Conforme foi possível constatar numa visita ao local, percorrendo o trilho em terra batida que leva à ponte pênsil, vale a pena esperar para planear um passeio mais seguro – até porque o local está condicionado e a entrada na ponte interdita ao público.
Nessa altura, os visitantes serão convidados a deixar o carro junto à igreja de Rebordelo, no lado de Amarante; ou ainda junto à estação de Lourido, na Ecopista do Tâmega, para percorrerem a pé o caminho até à ponte – a partir do primeiro ponto, trata-se de 1300 metros e, do segundo, de 800 metros. O acesso à antiga travessia, que terá sido originalmente construída há quase cem anos, faz-se por caminhos estreitos e sinuosos, a descer encostas irregulares que decaem abruptamente para o Tâmega. Ali passavam carros de bois, mas não se imaginaria ser necessário o trânsito de maquinaria pesada a carregar material de construção às toneladas. A esse desafio acresceu outro: cerca de 80% dos trabalhos tiveram de ser realizados em suspensão, por dois alpinistas, um deles com a experiência de ter trabalhado na construção da ponte suspensa de Arouca.
Em ambos os casos, tanto nos acessos ao estaleiro como ao tabuleiro da ponte, viveram-se atribulações causadas pelo estado do tempo e das águas do rio. António Pinto de Vasconcelos e o filho Cristiano, responsáveis da empresa amarantina de construção civil Crismaga, passaram por vários sobressaltos, sustos e planos desfeitos e refeitos. Pode dizer-se que viveram com o coração nas mãos ao longo dos dois anos que decorreu esta obra promovida pela Associação de Municípios do Douro e Tâmega (AMDT).


“Não foi uma obra fácil por vários fatores, mas o principal foram as acessibilidades. Foi preciso abrir caminhos para as máquinas lá chegarem, foi muito difícil transportar os materiais. O betão teve que ser feito lá”, contou António Vasconcelos à Flor do Tâmega. Entre os reveses causados por aquele imprevisível estaleiro estão muitas insónias, recordou o gerente da Crismaga. Há uns meses, quando se colocava um cabo de toneladas entre as duas margens, com máquinas posicionadas num lado e no outro, o leito do rio começou a subir e foi preciso parar. “Quando voltamos lá, à noite, vimos que um cabo de 50 mil euros estava no meio do rio. Nem pudemos dormir, mas correu bem e conseguimos recuperar o cabo no dia seguinte. Foi mesmo uma aventura!”, relatou.
O construtor nunca tinha feito uma obra deste género e sente a gratificação de ter aplicado “muito boa vontade e muito esforço” a dar nova vida a um património da sua terra. “A ponte velha está lá, pode-se ver, e os cabos novos é que estão a segurá-la”, orgulha-se. Ricardo Magalhães, secretário-geral da AMDT, tem uma expressão poética para esta característica da requalificação da ponte de arame de Rebordelo/Arnóia: o propósito foi criar um abraço entre a estrutura antiga e a nova.
“A natureza deste projeto, e o grande objetivo, não foi fazer uma reabilitação da ponte antiga. O que se fez foi abraçar a ponte antiga. Ela está lá, pode ser visitada. Não foi substituída, foi sobreposta, foi-lhe dado um novo uso com a colocação de uma nova estrutura, que a deixa na mesma à vista”, descreveu o responsável da Associação de Municípios. Ricardo Magalhães destaca, além disso, a comunhão de interesses dos dois concelhos que partilham esta ponte de arame, identificada como património arquitetónico pela Direcção Geral do Património Cultural, enquanto exemplar de arquitetura de comunicações e transportes.
“Os dois municípios estavam dispostos a avançar para a obra mesmo sem financiamento, mas foi possível encaixar o projeto no PROVERE e ter financiamento de 85%”, explicou. No total, entre estudo, projeto e empreitada, foram investidos 324.283,67 euros, através de uma candidatura no âmbito da Estratégia de Eficiência Coletiva (EEC) PROVERE – Projetos Âncora, do Programa Operacional Regional do Norte. Outros gastos há a contabilizar, mas não propriamente em euros – desde que se começou a pensar em requalificar a ponte de arame passaram 20 anos. Em 2004, quando a AMDT encomendou à Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) o primeiro estudo, “a ponte estava degradada, mas ainda se andava nela”, assinalou Ricardo Magalhães.
O projeto foi arquivado por motivos alheios à vontade dos municípios de Amarante e Celorico de Basto, já que, em 2008, o Governo lançou finalmente o concurso público para a atribuição de concessões para os aproveitamentos hidroelétricos do Fridão, Alvito e Almourol, no âmbito do Plano Nacional de Barragens. A construção da barragem de Fridão estava a ser contestada localmente desde o anúncio da sua intenção – recorde-se, por exemplo, a aprovação por unanimidade de uma moção de “firme oposição” pelo Executivo municipal amarantino, em reunião de setembro de 2007. A ponte de arame encontrava-se na lista de zonas inundáveis, mas a barragem nunca passou do papel, embora muitos papéis tenham circulado entre o Governo e a concessionária EDP, entre o lançamento do concurso e a decisão recente do Supremo Tribunal Administrativo, que confirma a obrigação do Estado de devolver àquela empresa os quase 218 milhões de euros então pagos pela adjudicação.
O enterro da barragem de Fridão permitiu a ressurreição da ponte de arame. “Logo no dia seguinte à publicação da portaria que formalizou a desistência da barragem, decidimos voltar à obra da ponte”, recordou Ricardo Magalhães, embora a AMDT e os autarcas de Amarante e Celorico tenham constatado pouco depois que não era possível aproveitar o primeiro projeto de engenharia, por duas razões. A primeira teve a ver com o avançar da degradação da ponte, que se tornara intransitável; a segunda com alterações legais. Já em 2004, o estudo da FEUP registara o mau estado do pavimento, com tábuas partidas ou em falta, e a madeira muito degradada por caruncho, fungos e musgos, e corrosão dos arames, ao que se juntava a natural invasão da vegetação.
Luís Filipe Barbosa Miranda, o autor desse estudo que deu origem a uma tese de mestrado em 2006, referiu testemunhos de reparações nos anos de 1980, que não evitaram a progressiva ruína. E se o levantamento técnico precisou de ser atualizado, o trabalho daquele engenheiro que dedicou a sua pesquisa de mestrado à ponte de arame contribuiu para compreender o valor da ponte de arame de Rebordelo/Arnóia enquanto testemunho raro de uma tipologia de construção simples e engenhosa do século XIX e XX, cujos vestígios foram desaparecendo.
E foi assim que a travessia centenária escondida no fundo da encosta passou de condenada a projeto-âncora da Associação de Municípios do Douro e Tâmega. Esta entidade dedicou-se à reabilitação “pela carga histórica que a ponte tem, por permitir a ligação não só de dois concelhos, como de dois distritos”, já que Amarante fica no distrito do Porto e Celorico de Basto pertence ao distrito de Braga, salientou Ricardo Magalhães. A Flor do Tâmega procurou entrevistar os autarcas dos dois municípios sobre a requalificação da ponte, mas não houve disponibilidade da parte desses responsáveis para prestar declarações.
Chegados a este ponto da narrativa, é preciso avançar pelos dois caminhos em aberto – por um lado, falar da engenharia de um abraço; e, por outro, explicar o que se sabe sobre a já referida “carga histórica”. Comecemos pela segunda tarefa, que dela decorre a primeira.
O vigor da engenharia dos séculos XIX e XX
Luís Miranda, na já referida tese “Estudo e análise de uma ponte de arame: um caso de reabilitação” (2006), indica terem sido construídas várias pontes deste género, sobretudo ao longo dos séculos XIX e XX, em Portugal e noutros países, como os Estados Unidos, França e Suíça. O levantamento realizado pelo investigador, que contactou todas as 308 autarquias portuguesas e obteve respostas de 66 delas, concluiu que existiam ou tinham existido pontes de arame nos concelhos de Vinhais, Vila Real, Nelas e Ribeira de Pena. Reunindo estes com outros dados, o engenheiro chegou ao conhecimento da existência de onze pontes de arame em território português, todas elas situadas no Norte do país. Entre elas, conta-se a célebre ponte pênsil D. Maria II que, ligando os núcleos urbanos ribeirinhos de Porto e Gaia, substituiu a malograda ponte das barcas. Foi inaugurada em 1841 e demolida em 1887, tendo sido preservados os pilares e a casa da guarda.
O desmantelamento foi, aliás, a principal causa da extinção das pontes suspensas pelo mundo – cerca de 40% delas terão desaparecido assim, adianta Luís Miranda. As restantes foram substituídas, destruídas por ação humana ou colapsaram por desgaste e causas naturais. À época do estudo deste investigador, boa parte destas pontes encontravam-se em avançado estado de degradação, algumas apenas com vestígios visíveis.
Aquilo que se sabe da história das pontes suspensas de arame ajuda a criar uma versão para a construção da ponte de Rebordelo/Arnóia, já que elas surgiram na sequência de experiências de projetistas afoitos e a primeira que se conhece foi implantada em Filadélfia, nos Estados Unidos, em 1916, para uso pedonal. O engenheiro e inventor francês Marc Seguin (1786 – 1875) foi grande impulsionador do desenvolvimento desta tipologia de pontes e projetou dezenas delas pela Europa, de acordo com Luís Miranda. Só em França, foram construídas mais de 400.



“As experiências de Seguin foram úteis para analisar o comportamento destas estruturas ao longo do tempo, para definir o processo a adotar, para demonstrar que a resistência de um cabo composto por arames finos é duas vezes superior à das correntes de ferro muito utilizadas à época pelos ingleses, e para definir uma nova forma de entrançar os arames, que tinha em conta os fenómenos de corrosão”, afirma Luís Miranda, na supracitada tese de mestrado. Ou seja, quando foi necessário construir uma nova ponte sobre o Tâmega entre Rebordelo e Arnóia – uma vez que a travessia primitiva, de finais do século XIX, fora destruída – esta tecnologia dos cabos de arame estava já desenvolvida e muito testada, inclusivamente em pontes muito mais longas e mais complexas do que aquela que era preciso implantar naquele local.
No seu estudo, o autor relaciona ainda a existência destas pontes com a presença nos territórios de técnicos ligados à construção dos caminhos-de-ferro (a construção da Linha do Tâmega decorreu no primeiro quartel do século XX) e também com necessidades de circulação de pessoas e bens. A ponte de arame que chegou aos nossos dias é contemporânea do início da laboração das minas de Vieiros, em Rebordelo e a travessia permitia aos celoricenses deslocarem-se para as minas, assim como aos amarantinos frequentar a feira e o mercado em Celorico. Na imprensa da época, refere-se a criação de famílias a partir de namoros tornados possíveis pela (então) nova ponte.
Essa travessia de arame era mais larga do que a primitiva, com 55 metros de comprimento e 2,5 metros de largura, com um tabuleiro composto quase totalmente por barrotes de madeira de eucalipto suspenso por um sistema de cabos de arame, amarrados nas encostas das margens do rio Tâmega. “Quando os cabos de arame chegam ao maciço rochoso, o cabo abre como se fossem braços e amarra-se na rocha. Os cabos abrem-se como se fossem uma teia, mas não foi possível perceber muito bem como estão amarrados, porque para fazer essa indagação era preciso destruir”, explicou à Flor do Tâmega o engenheiro e professor da FEUP João Paulo Miranda Guedes, coordenador da equipa do NCREP (empresa de consultadoria em reabilitação do património edificado, que é um spin-off daquela faculdade) que projetou a nova ponte e que esteve também envolvido no primeiro projeto encomendado pela AMDT, tendo inclusive sido supervisor de Luís Miranda.
O estudo inicial “foi muito interessante porque permitiu descobrir uma série de pontes”, referiu, salientando a ponderação e capacidade dos construtores do início do século XX, que não dispunham dos recursos de hoje para contornar os obstáculos do terreno. “As pontes não podem ser construídas em qualquer sítio, tem que ser em zonas do rio com boas condições de amarração. No passado, era preciso saber onde pousar a ponte e esse aspecto era ainda mais fundamental – a amarração era o elemento principal”, sublinhou. Ainda que a tecnologia das pontes de arame já existisse, “é interessante ver como é que numa zona relativamente contida existem tantas pontes deste tipo”, assinalou o engenheiro da FEUP.
É uma tipologia simples e engenhosa, que foi utilizada com elementos naturais, como fibras vegetais, antes de serem usados elementos metálicos. No caso da ponte de Rebordelo/Arnóia, a suspensão do tabuleiro é feita através de dois cabos principais, cada um constituído por três cordões, que estão ligados entre si – pelas contas de Luís Miranda, cada cabo é composto por 219 arames. O tabuleiro da ponte liga-se aos cabos principais por 104 pendurais (52 de cada lado), cada um deles com oito arames, torcidos a partir da rotação de uma barra. Cada um dos cabos principais amarra-se às rochas da margem na tal forma de teia, provavelmente em mais do que um ponto.
Elementos antigos “abraçados” por nova estrutura

Resumida a história da técnica, e a técnica da história, avancemos para a poesia da requalificação. Tal como referiu o secretário-geral da AMDT, Ricardo Magalhães, a ponte nova não substitui a ponte antiga, antes a envolveu, numa solução de engenharia de estruturas que permitiu recuperar a funcionalidade da ponte com segurança. A nova estrutura nasceu, assim, à volta dos elementos existentes da ponte antiga, com alguns deles a serem recuperados, permitindo que ela continuasse a mostrar-se e a dar o testemunho da sua época, e da habilidade daqueles que espalharam as pontes de arame pelo mundo.
Quando for possível circular pela nova ponte, no seu tabuleiro de 2,5 metros de largura e ao longo dos 55 metros entre as margens, será possível ver de perto e tocar nestes elementos: nos cabos feitos por 219 arames entrelaçados e nos pendurais, assim como observar a teia de cabos que entra pela rocha dentro. Os cabos antigos, aliás, passam a uma cota mais baixa do que os cabos novos, e surgem em primeiro plano quando se aprecia a ponte. A nova estrutura não está ancorada nas rochas, mas amarrada em fortes blocos de betão construídos sobre elas. Foram ali aplicadas as mais recentes técnicas de preservação de património para sobrepor novas estruturas a construções mais arcaicas, indicou João Miranda Guedes.

“A ideia não era fazer uma ponte nova, mas procurar perceber aquela ponte, perceber o que tinha de original e, a partir daí, propormos o que podia ressuscitá-la, recuperá-la e preservá-la como ponte pedonal que ela era. Salvaguardar o que podia ser salvaguardado”, referiu o mesmo responsável. Uma das sensações que foi salvaguardada é a vibração da ponte, que oscila tal como oscilava a antiga. “Não há outra forma de garantir que ela funciona”, sublinha o professor da FEUP. Depois do cortar da fita, em meados de setembro, já se pode ir sentir as (boas) vibrações desta nova ponte sobre o rio Tâmega, que liga Amarante a Celorico de Basto, o distrito do Porto ao distrito de Braga, e liga também as várias épocas históricas em que as populações da região se empenharam em que o rio fosse uma costura e não uma fronteira.