De acordo com os Censos de 2021, entre os cerca de 52 mil habitantes do concelho de Amarante contam-se quase 7 mil pessoas portadoras de deficiência ou que vivem com dificuldades significativas a nível motor, auditivo e/ou visual. Representam aproximadamente 13,5 por cento da população e são os problemas motores os que mais afetam estes amarantinos: 669 deles não conseguem deslocar-se de forma autónoma e quase 2900 têm grandes dificuldades em fazê-lo. Nesta reportagem, fomos ver, no terreno, quão inclusivo é o território, visitando serviços públicos, do centro à periferia, e utilizando transportes. Percebemos que há um esforço de inclusão, mas falta fazer quase tudo no domínio das acessibilidades.
A rota pelos cinco sentidos começou na freguesia de Fridão, que dista cerca de 10 km do centro de Amarante, onde o tempo corre calmo. Há pouco movimento, apenas um ou outro carro passa pela estrada sinuosa. O barulho, lá ao fundo, de crianças a brincar no recreio da escola, só é interrompido pelo chilrear dos pássaros.

Enquanto estamos no minimercado da Portela, aparece uma senhora, esbaforida, às compras para o almoço do dia. Com 10 euros na mão, ouve a nossa conversa com a proprietária sobre o conteúdo desta reportagem. De imediato, diz: “Pode ir falar com o meu irmão sobre a minha sobrinha que é invisual e teve de ir estudar para Penafiel”. O irmão chama-se Manuel Medeiros. Minutos depois, é ele que surge no horizonte. Um homem sorridente, disposto a falar da filha mais nova, com 10 anos, que tem uma doença rara. “Descobrimos quando ela tinha 8 meses que tem uma síndrome que lhe afeta a visão”, começa por contar. “Nem um pai, nem uma mãe estão preparados para receber uma notícia destas, porque não temos casos na família e não sabíamos lidar com a situação”, continua.
De acordo com o diagnóstico, Soraia iria precisar de cuidados especiais e de uma vida adaptada à sua condição. “Pensei logo que não podíamos morar numa casa de três andares, que tinha de fazer uma casa diferente para ela e que o futuro dela não seria igual ao da irmã mais velha, que é independente”, recorda Manuel Medeiros. Mas Soraia não precisou de nada disso. “Ela faz questão de ter uma vida normal”, diz o pai, com um olhar orgulhoso. “Desde muito cedo que faz tudo sozinha em casa: sobe e desce as escadas, toma banho, faz a cama, arruma o quarto e uma coisa que ela detesta, que é pôr a mesa. Mas tem de ser”, descreve, sorrindo.
Apesar da autonomia da menina ser um bom indicador para o futuro escolar, aos quatro anos os pais quiseram inscrevê-la no ensino pré-escolar da freguesia de Fridão. Mas foram desiludidos pelo acolhimento do sistema. “A resposta foi negativa, por falta de educadores do ensino especial”, recorda Manuel Medeiros. Depois de alguma insistência, Soraia foi colocada num infantário no centro da cidade, onde estava destacado um educador de ensino especial. “Todos os que lidavam com ela em pequena diziam que havia ali uma menina muito autónoma e com vontade de superar a situação”, diz o pai.
Só que, entretanto, outro obstáculo se juntou ao caminho. “Aos seis anos, disseram que não tinham lugar para a Soraia em Amarante, porque não havia professores de ensino especial na escola primária”, recorda. A solução passava por Vila Real ou Penafiel, cujos agrupamentos tinham professores para apoiar a menina de 6 anos no arranque do 1.º ano letivo. “Claro que gostava muito que ela andasse em Amarante o ano todo, que estivesse aqui ao pé de nós, mas não lhe deram condições…”, justifica com uma expressão triste. “Optámos por Penafiel e pedimos transporte à Câmara Municipal de Amarante, que paga as viagens da minha filha”, confirma Manuel Medeiros.

Na primeira visita que os pais fizeram à escola, em Penafiel, antes do início do ano letivo, a professora mostrou-se muito preocupada com o facto de a sala ser no segundo piso e haver muitas escadas. A resposta dos pais foi dada com um sorriso: “Professora, ela vai subir e descer isto primeiro do que nós, não se preocupe!”
A rotina é exigente. “No 1.º e 2.º anos, a minha filha saía de casa às 6h30 e só regressava perto das 19h. Nunca se queixou, sempre foi feliz a ir para a escola”, afirma Manuel Medeiros. Isso acontecia porque o transporte era partilhado com outras crianças que vivem entre Penafiel e Amarante e, por isso, era necessário fazer várias paragens ao longo do percurso. No 3.º ano, e agora no 4.º ano, já sai de casa perto das 8h e chega às 16h, porque as viagens são apenas partilhadas com mais um colega.
A questão do transporte é a mais sensível, sobretudo em setembro. “A minha filha nunca começa o ano letivo ao mesmo tempo do que os colegas, porque a atribuição do transporte é uma burocracia que nunca mais acaba”, desabafa Manuel Medeiros. “Falta sempre um papel qualquer, uma assinatura ou não sei mais o quê, e a minha filha tem de ficar em casa da minha mãe à espera que a levem à escola”. Nenhum dos pais tem horário compatível para fazer a viagem até Penafiel. As únicas faltas justificadas são para reuniões de escola ou festas do agrupamento. E as reuniões confirmam o bom desempenho de Soraia: “Saio de lá de queixo caído, porque a professora pede à minha filha para não responder, para dar oportunidade aos outros meninos”, assinala o pai.
Claro que Soraia tem um professor do ensino especial e material escolar diferente – lê versões em braille dos livros e usa uma máquina de escrever para braille. Mas o gosto por aprender tem feito a diferença. Manuel Medeiros tira o telemóvel do bolso e mostra-nos provas da perseverança da filha: Soraia anda de bicicleta, canta e toca piano. Os vídeos não enganam: a voz doce e afinada, o toque suave nas teclas do piano e um sorriso de orelha a orelha a andar de bicicleta. “Aprendeu tudo sozinha, fecha-se no quarto, pesquisa no telemóvel, que tem aplicações adaptadas à condição dela, e exercita”, conta o pai. O talento era inequívoco e não houve outro remédio senão inscrevê-la no Centro Cultural de Amarante, para aperfeiçoar o piano e o canto. Nas visitas ao centro da cidade, Manuel Medeiros queixa-se sobretudo da falta de sinais sonoros para invisuais. Na freguesia de Fridão, onde moram, já se incomodou com algumas coisas, mas agora já se rendeu às garantias que a filha lhe dá de que nada é um problema.


À esquerda: passeio estreito e em paralelo, que dá acesso à cantina de apoio ao campo de férias. À direita: rampas inclinadas para acesso à mesma cantina, na freguesia de Fridão, Amarante (Fotos: Flor do Tâmega/DR)
“Nas férias de verão a minha filha faz parte do grupo de miúdos aqui de Fridão e anda sempre com eles. Faz tudo igual, não há nada que ela não faça e quando há um obstáculo tem uma super amiga que a ajuda”, conta o pai. As rampas de acesso à cantina da escola são íngremes, o passeio é estreito e bastante irregular. “Já me incomodei com isso, mas a minha filha diz que não é preciso haver chatices, que ela já aprendeu a andar por ali”, remata.
As rampas íngremes e as escadas inalcançáveis nas juntas de freguesia

Uns metros ao lado da cantina, que dá apoio aos campos de férias, está a Junta de Freguesia de Fridão. Quando quisemos entrar, deparámo-nos apenas com escadas no acesso. Demos a volta ao edifício e percebemos que há uma rampa, mas bastante acentuada. O presidente da Assembleia de Freguesia desloca-se em cadeira de rodas e ninguém melhor do que ele para explicar como se ultrapassa essa barreira. Eulálio Teixeira disse que não gosta muito de entrevistas nem de fotografias, mas aceitou, através de chamada telefónica, responder às nossas perguntas. “Chamo a essa rampa a rampa da morte”, começa por dizer. “Sempre que há reuniões na junta de freguesia, e são bastantes, tenho de ter ajuda e rezo para ninguém se magoar”, desabafa. Refere que, desde que este Executivo tomou posse, pede para que a inclinação da rampa seja corrigida.
“A luta intensificou-se desde há três anos, quando parecia haver disponibilidade, mas nada aconteceu”, afirma. Muitos dos papéis que tem de assinar são-lhe levados pela funcionária da Junta, para evitar perigos desnecessários.
Em contraste, a Junta de Freguesia de Fridão parece ter uma relação muito próxima com a comunidade, ao oferecer serviços como o envio e a receção de cartas registadas, o preenchimento do IRS e o levantamento de medicamentos. Há pessoas de outras freguesias que se deslocam a Fridão para usufruir dessas vantagens.
Mesmo assim, mantém-se esta dificuldade com o edifício da Junta e é por isso que Eulálio Teixeira se confessa desiludido. “A palavra desilusão é a que melhor caracteriza o meu estado de espírito, que se estende não só à freguesia de Fridão, mas também à cidade de Amarante”, afirma. “A última vez que me lembro de ir passear ao centro da cidade foi em 2016. Desde então que não me sinto confortável e, por isso, não vou”, desabafa.

Precisamente no centro da cidade, a sede da União de Freguesias de Amarante (S.Gonçalo), Madalena, Cepelos e Gatão não é acessível a um cidadão portador de deficiência que se desloque sozinho. A rampa de acesso é íngreme e o estacionamento disponível obriga a ter de a subir. O presidente da União de Freguesias explica que essa situação vai ser corrigida. “Sabemos que o nosso espaço não está acessível, mas como nos situamos na zona histórica temos de pedir autorização à Direção Regional da Cultura para colocar uma rampa [Nota: este organismo foi entretanto extinto e as suas competências transferidas para a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional]. Essa autorização já está dada, a autarquia também já deu o parecer positivo e agora vamos fazer um estacionamento cá dentro, apenas reservado a pessoas com mobilidade reduzida”, esclarece Américo Paulo Ribeiro. O presidente da União de Freguesias contava que a obra, que já arrancou, estivesse concluída ainda durante o mês de junho, porque se confessa incomodado com a falta de acessibilidade do local.

Em Bustelo, o espaço da junta de freguesia estava em obras no início de junho, mas só a parte interior, porque as escadas de acesso ao edifício não foram alteradas e, pela porta principal, dificilmente alguém com mobilidade reduzida consegue entrar. Descobrimos, na parte de trás, uma rampa. Dá acesso a uma porta que permite a entrada no edifício, mas não há estacionamento reservado e o que existe fica numa subida, o que dificulta o acesso. Em resposta ao nosso pedido de entrevista, o presidente da União de Freguesias de Bustelo, Carneiro e Carvalho de Rei, Ângelo Magalhães, apenas respondeu – por email – que “a freguesia possui as facilidades de acesso às pessoas com mobilidade reduzida, ficando assim esclarecidas as questões colocadas”.


À esquerda: entrada principal da União de Freguesias de Bustelo, Carneiro e Carvalho de Rei, em Amarante, apenas acessível através de escadas. À direita: entrada pela porta traseira, sem lugar de estacionamento reservado para pessoas com deficiência (Fotos: Flor do Tâmega/DR)
A situação é semelhante na Junta de Freguesia de Padronelo. À entrada principal só se chega por escadas e, nas traseiras, o acesso à porta tem pilaretes de cimento, não retráteis, o que diminui o espaço de passagem. Também aqui não há estacionamento reservado a pessoas com mobilidade reduzida.


À esquerda: entrada alternativa da Junta de Freguesia de Padronelo, Amarante, com pilaretes de cimento. À direita: escadas de acesso à entrada principal da junta de freguesia (Fotos: Flor do Tâmega/DR)
Em Moure, ajuda a comunidade o “senhor do peixe e do pão”
A mobilidade reduzida nem sempre se traduz em incapacidade permanente, pode ser uma incapacidade temporária, como aconteceu a Maria Leite. Nascida e criada em Moure, Lufrei, um grave acidente atirou-a, quase um ano, para dentro das quatro paredes de um hospital. Mãe de três filhas, todas emigradas, passa parte dos seus dias a passear devagarinho pela freguesia. Fala com as vizinhas e, de vez em quando, cruza-se com a irmã que chega do trabalho. “Não posso ficar em casa parada muito tempo, porque me doem os joelhos e as costas. Então, pego na bengala e venho passear”, diz Maria Leite.
“Não quero aparecer no jornal”, pede aflita quando percebe que estamos a escrever o que nos está a dizer. Não gosta de falar da sua vida com estranhos. Mas, depois de uma conversa de alguns minutos, aceitou contar como se organiza em casa. “É assim, tenho que ir ao centro de Amarante duas ou três vezes por mês e, como não tenho carro, pago 10 euros e chamo um táxi”, começa. Embora diga que há autocarros disponíveis, prefere o táxi. “O piso é muito incerto e faz doer as costelas quando salta na estrada”, diz.

Quando chama o táxi, aproveita e leva o carrinho das compras: vai à consulta com o médico, à farmácia e ao talho. Se precisar de mais alguma coisa do centro aproveita a viagem, mas não pode andar com muito peso. “O senhor do táxi ajuda, as pessoas ajudam, não tenho qualquer problema”, conta. Em Moure, ainda há a tradicional carrinha que passa à hora de almoço, com peixe fresco, duas vezes por semana. “Quando ouço a música, porque o peixeiro não usa corneta, venho logo cá fora ver o peixe que há”, relata. Também o padeiro deixa o saco com o pão do dia à porta de quem contrata o serviço. “Para mim chega, compro peixe da carrinha e o pão vem todos os dias e é muito bom”, garante. Entretanto, remata a conversa, começa a andar no sentido oposto e a dizer que a freguesia vai toda vê-la no jornal e que vai ficar envergonhada.
O Provedor Municipal da Pessoa com Deficiência
Amarante é um dos municípios que criou a figura do Provedor Municipal da Pessoa com Deficiência. Este cargo é totalmente independente, não é remunerado e assume apenas a figura de consultadoria voluntária. O Provedor identifica problemas, sugere soluções e faz propostas. Mas tudo isto depende sempre de decisões do Executivo camarário, pelas quais não tem qualquer responsabilidade. Filipe Cerqueira foi nomeado Provedor Municipal da Pessoa com Deficiência em novembro de 2023. A vida pregou-lhe uma rasteira e foi então que resolveu converter a dor em propósito, assumindo o compromisso de lutar por quem enfrenta os mesmos obstáculos. Atleta amarantino, entre 2011 e 2025, destacou-se em três modalidades distintas — andebol, ciclismo e remo — somando títulos nacionais e internacionais.
No andebol, foi campeão mundial e europeu pela seleção, além de vencer por duas vezes a prestigiada Garcia Cup. No ciclismo, foi vice-campeão nacional em pista velocidade e contrarrelógio e alcançou o 2.º lugar na Taça de Portugal. Já no remo, sagrou-se quatro vezes campeão nacional de velocidade e duas vezes campeão nacional de remo indoor, acumulando ainda diversos títulos internacionais, com especial destaque para o Open de Portugal e as regatas em Turim, Itália, onde arrecadou duas medalhas de ouro e duas de prata. Cabe-lhe agora a missão de promover políticas que garantam os direitos das pessoas com deficiência, com especial foco na melhoria da acessibilidade e mobilidade em Amarante. Uma das primeiras medidas que se esforçou por ver implementada foi a criação de um canal direto de comunicação com os munícipes portadores de deficiência, para substituir as conversas via redes sociais.

Filipe Cerqueira está sempre com as rodas a caminho e a postos para tornar Amarante num município ainda mais inclusivo. Começámos por falar sobre o atendimento diferenciado, porque em nenhum dos locais que visitámos nesta reportagem encontrámos quem soubesse interpretar Língua Gestual Portuguesa. “Infelizmente, ainda não existem muitos pontos”, explica Filipe Cerqueira, que refere o caso do Museu Amadeo Souza Cardoso, onde existe uma intérprete, mas que na altura estava fechado para obras de manutenção. Filipe Cerqueira aceitou o convite para nos acompanhar num circuito pelo centro de Amarante.
“A Segurança Social é um dos casos mais preocupantes”
Seguimos até à Segurança Social e, na entrada, somos abordados por um munícipe, cuja identidade pediu para não ser revelada, a agradecer o facto de estarmos a dar atenção a esta situação. “Isto não tem jeito nenhum, as pessoas com cadeiras de rodas têm um estacionamento vergonhoso, têm de se deslocar aqui no meio de prédios, com este chão todo partido”, desabafa.


À esquerda: piso de acesso à Segurança Social de Amarante, bastante degradado. À direita: acesso Segurança Social, que implica passar por um estacionamento entre dois prédios (Fotos: Flor do Tâmega/DR)
O lugar reservado a pessoas com dístico de estacionamento fica numa rua a subir, cuja rampa de acesso ao passeio obriga a circular na estrada. Para chegar ao destino, o percurso é labiríntico e, apesar de em frente à dependência da Segurança Social haver um parque de estacionamento, o mesmo é de gestão privada. Filipe Cerqueira afirma que “esta situação já está sinalizada e, de facto, é dos casos que mais preocupam”.


À esquerda: rampa que dá acesso ao edifício onde está localizada a Segurança Social de Amarante. à direita: lugar destinado aos utentes com deficiência, no exterior do edifício, sem rampa de acesso ao passeio junto ao estacionamento, obrigando a percorrer parte da estrada (Fotos: Flor do Tâmega/DR)
Contactámos o gabinete de imprensa da Segurança Social, que nos enviou – por email – a seguinte resposta: “As instalações dos Serviços de Atendimento da Segurança Social em Amarante, localizadas num condomínio privado, cumprem os requisitos de acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida, tanto no acesso exterior, como no seu interior”. Beatriz Gama Lobo, assessora de imprensa, acrescentou que a administração do condomínio está a promover obras de requalificação para a melhoria dos acessos. Enquanto lá estivemos, não entrou qualquer pessoa com mobilidade reduzida, mas o mesmo munícipe que nos abordou à chegada garantiu que são os funcionários e os utentes que ajudam, porque não há condições dignas para as receber.
Os problemas com o estacionamento e com as portas manuais
No centro de Amarante, há estacionamento para pessoas com deficiência, com espaços definidos, amplos e a autarquia isenta de pagamento os veículos com dístico. “O problema é que esses espaços estão muitas vezes ocupados por veículos não autorizados”, afirma Filipe Cerqueira. “As pessoas estacionam nesses sítios porque lhes dá mais jeito, porque são só cinco minutos, e isso não tem qualquer sentido”, desabafa. Quando os lugares estão vazios, encontramos zonas em que não há rampa de acesso ao passeio, o que obriga por exemplo, um cidadão condutor que necessite de cadeira de rodas a ter de usar a estrada para chegar à rampa.

Seguimos viagem até à GNR de Amarante, que, por acaso, é o local de trabalho do Provedor, e percebemos que a abertura da porta principal é manual. Encontrámos a mesma situação numa dependência bancária no centro da cidade, o que pode causar constrangimentos no acesso a pessoas invisuais, por exemplo. “Uma pessoa em cadeira de rodas pode não conseguir com uma das mãos manobrar a cadeira e com outra abrir a porta, porque é preciso alguma força”, explica Filipe Cerqueira.

As vedações da zona histórica de Amarante
Praticamente toda a zona histórica da cidade é imprópria para pessoas portadoras de deficiência. Passeios estreitos, com obstáculos e degraus no acesso ao interior das lojas. Quando entrámos em alguns estabelecimentos para saber se tinham uma rampa ou outro tipo de apoio, a resposta foi perentória: não. A falta do gerente ou do responsável pelo negócio recorrentemente impediu que conseguíssemos alguma explicação. Mesmo assim, uma das lojistas de rua, que quis manter a sua identidade confidencial, explicou que as rampas naqueles passeios eram perigosas, porque a maioria das pessoas caía nelas. Questionada sobre a opção de terem rampas amovíveis, retorquiu de imediato: “Isso já não é comigo”.


Rua 31 de janeiro em Amarante: loja com atendimento prioritário, sem rampa de acesso e passeios com obstáculos (Foto: Flor do Tâmega/DR)
Cruzamos o Rio Tâmega e, já na outra margem, cansados de tantos quilómetros percorridos, nada melhor do que contemplar a paisagem num dos bancos de madeira disponíveis pela cidade. Mas os degraus impedem-no – ou pelo menos dificultam-no – a alguém portador de deficiência.

“O relevo da cidade é muito instável, mas nestes últimos dois anos foram criados, em pontos estratégicos, três elevadores para colmatar essas falhas”, lembra Filipe Cerqueira. A localização dos elevadores é no centro da cidade e permite o acesso a casas de banho e à frente ribeirinha. O que fica em frente à igreja de S. Gonçalo tem sinal sonoro, números em braille e é bastante espaçoso. Dá acesso a casas de banho, mas do lado de fora falta a sinalética a indicar que lá dentro existe um espaço adaptado a pessoas com deficiência.
Essa situação foi salvaguardada no elevador da Rua Cândido dos Reis, que permite chegar junto ao rio: as casas de banho estão bem visíveis, mas os invisuais não têm como saber para onde vão, uma vez que não está disponível informação em braille no elevador. Apesar de estar disponível o sinal sonoro, quem estiver sozinho não consegue perceber para onde se está a dirigir. E o piso do parque de estacionamento também pode criar dificuldades. Seguimos com um carrinho de criança e, em partes do percurso, o carrinho ficou preso ou então a irregularidade do piso não dava conforto ao bebé.


Elevador de acesso à frente ribeirinha de Amarante sem opção de braille e o chão do parque de estacionamento nessa mesma zona (Fotos: Flor do Tâmega/DR)
Filipe Cerqueira garante já ter alertado a autarquia para estas dificuldades, mas elogia a iniciativa de tornar toda aquela zona acessível. Mesmo assim, assinala que o piso da cidade nem sempre é o mais adequado. Porque um outro obstáculo que identificámos é considerado símbolo do património urbano nacional: a calçada portuguesa. Presente em praças, ruas e passeios de norte a sul do país, este pavimento em mosaico combina estética e tradição, refletindo a identidade cultural portuguesa. No entanto, Filipe Cerqueira confirma que esta marca nacional não ajuda as pessoas com mobilidade reduzida, nem mesmo, por exemplo, os carrinhos de bebé.
Bombeiros de Amarante: entrada proibida
Cheio de barreiras arquitetónicas está também o quartel dos Bombeiros Voluntários (BV) de Amarante. Percebemos que o edifício tem muitas escadas e chegar à secretaria é tarefa impossível para muitos dos munícipes portadores de deficiência. À porta do quartel, um dos bombeiros confirma que, na hipótese de alguém mudo ali pedir ajuda, terá de saber escrever, porque a interpretação de Língua gestual Portuguesa não é um requisito para quem lá trabalha. Questionado pela Flôr do Tâmega, o Comandante dos BV de Amarante, Rui Ribeiro, confirma as dificuldades e adianta que já foram encetados esforços para a construção de um novo quartel que responda a todas as situações legalmente exigidas.

Os caminhos e os descaminhos em Amarante
Um bom exemplo é o Hospital de S. Gonçalo – Amarante, local totalmente acessível no seu interior, com lugares de estacionamento para pessoas com deficiência disponíveis à porta das urgências e na zona das consultas. O Hospital fica na freguesia de Telões e o acesso a quem está do outro lado do Rio Tâmega pode ser feito de três formas: pela Ponte de S. Gonçalo (que tem condicionamento de trânsito e está muitas vezes encerrada); pela Ponte Nova que, apesar de ter vias amplas, só tem uma em cada sentido e acaba por suportar a maior parte da circulação local entre margens; ou então através da A4. “A questão da Ponte Nova já está também sinalizada, sobretudo porque ao início da manhã e ao fim da tarde acaba por estar mais congestionada por falta de alternativas”, explica Filipe Cerqueira.

Apanhar um autocarro pode ser a solução, já que o Terminal da cidade é moderno, amplo e com muitas opções de mobilidade dentro e fora da cidade. A questão é que, à primeira vista, o espaço parece vedado a pessoas portadoras de deficiência, pois o número de autocarros que lhes dá acesso é bastante reduzido, os degraus são muitos e não existe informação sonora ou em braille.
Entrámos no Terminal para pedir informações a uma das empresas que lá opera, para uma viagem até Penafiel. Percebemos que o terminal onde o autocarro estaciona não tem rampa de acesso e o próprio veículo não está adaptado a pessoas com deficiência. Pedimos os horários em braille e não existem, nem sinais sonoros com informação relevante, como a indicação dos terminais de embarque e dos destinos dos autocarros. Há dois parques de estacionamento, um deles no piso superior, com o único acesso disponível a ser feito por um número significativo de escadas, sem opção de elevador.


À esquerda: entrada principal do Terminal Rodoviário de Amarante. Àdireita: escadas de acesso ao estacionamento superior, sem opção de elevador (Fotos: Flor do Tâmega/DR)
Os cinco sentidos de Amarante a mexer
No desporto adaptado, a Associação Desportiva de Amarante (ADA) oferece as modalidades de Boccia e Tricicleta. Daniel Ribeiro, coordenador da secção, lembra que o projeto começou em 2017, quando o melhor amigo, Roberto Ferreira, atleta de Boccia com paralisia cerebral, o desafiou a ajudá-lo a criar uma equipa na terra natal, em Felgueiras. Entretanto esse capítulo encerrou e decidiram implementá-lo em Amarante, em estreita parceria com a CERCIMARANTE, CRL e a Associação Desportiva de Amarante. “O objetivo é suprir a lacuna da inexistência de oferta desportiva para pessoas com deficiência, no concelho de Amarante”, esclarece o coordenador.
A aposta no desporto adaptado surge para fazer a diferença na vida das pessoas com deficiência. “A nossa missão é fazer dos nossos atletas pessoas mais felizes, mais autónomas, através da inclusão, do acesso à prática desportiva, combatendo a exclusão e em luta permanente pelas acessibilidades. Facultamos muito mais que a prática desportiva, auxiliamos ao máximo os atletas, quer na formação e inserção profissional, quer na parte pessoal”, explica Daniel Ribeiro. “Num futuro a curto/médio prazo prevemos o alargamento do leque da oferta desportiva, nomeadamente de novas modalidades adaptadas, a todas as pessoas e a qualquer deficiência ou limitação”, antecipa o coordenador do desporto adaptado da ADA.
Daniel Ribeiro destacou o exemplo do atleta António Cruz, utente também da CERCIMARANTE, como forma de ilustrar o quão importante é o desporto na vida de alguém com necessidades especiais. “Fruto de toda a dedicação e trabalho desenvolvidos pelo seu treinador, Jorge Antunes, o António tem feito uma evolução notória e fantástica na modalidade, mas frisamos essencialmente a mudança que o Boccia provocou na vida dele. Após começar a praticar a modalidade, o António deixou o seu comportamento irreverente e imprevisível e passou a ser um exemplo na instituição, diminuiu drasticamente a necessidade de medicação e passou a ser um indivíduo muito mais feliz e socialmente ativo”, explica.
Por esta razão, as escolas são um dos locais de aposta da ADA nesta vertente. “Recentemente, absorvemos duas equipas de Boccia DI da Escola Secundária de Amarante, que competiram de forma federada nas competições nacionais da ANDDI – Portugal. Algo que nos enche de orgulho, é o facto de sermos uma referência ao nível da integração dos atletas oriundos do Desporto Escolar. Somos um exemplo de Boas Práticas da transição entre o Desporto Escolar e o Desporto Federado”, afirma Daniel Ribeiro.

Na ótica dos espetadores de desporto, o Amarante FC foi uma das instituições da cidade que se transformou para receber pessoas com deficiência. A jogar na Liga 3, o clube é um dos expoentes da cidade e não era acessível a todos. Filipe Cerqueira – Provedor Municipal da Pessoa com Deficiência – recorda o momento em que se reuniu pela primeira vez com os responsáveis do clube amarantino e ficou retido no parque de estacionamento, porque o acesso ao estádio era impossível. “Não conseguia sair dali, porque a zona onde se estaciona e o passeio tinham um declive de cerca de 25 cm, tive que esperar que alguém passasse para me ajudar e eu tenho até uma força acima da média em relação a qualquer pessoa de cadeira de rodas”, relembra.
A conversa entre o clube e Filipe Cerqueira ajudou a criar sinalização até à entrada do estádio e um elevador, que apenas era utilizado para pessoas do clube, ficou disponível para as pessoas com mobilidade condicionada. O clube decidiu também que os bilhetes se tornariam gratuitos para a pessoa portadora de deficiência e para um acompanhante.

E de volta ao ponto de partida
Durante a realização desta reportagem, tentámos contactar todas as entidades referidas, para que nos pudessem elucidar sobre as lacunas que encontrámos na visita no concelho. Apenas as Juntas de Freguesia de Amarante e de Bustelo, bem como a Segurança Social e os BV Amarante, nos responderam. Entidades como a Câmara Municipal de Amarante e outras Juntas de Freguesia entenderam não responder ao nosso pedido de entrevista. Tentámos também o Governo central, sobretudo o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, bem como os Serviços de Educação Especial e de Apoios Socioeducativos, e, até à data de publicação desta reportagem, não conseguimos chegar à fala com essas instituições. O caso da pequena Soraia é um dos exemplos que merecia ser explicado, sobretudo pelo impacto familiar que causa a falta de professores de ensino especial no concelho e o excesso de burocracia na atribuição do transporte.
Percebemos que a acessibilidade em Amarante ainda está longe de ser uma realidade plena. Há sinais positivos, como a existência de um Provedor Municipal – que nos acompanhou numa boa parte do percurso -, de um Balcão da Inclusão e da isenção de taxas de pagamento de estacionamento. No entanto, o que vimos revela um cenário contrastante: há quem desafie as probabilidades, como a Soraia, e quem se sinta preso pelas barreiras físicas e burocráticas, como Eulálio Teixeira.
O município dá passos, mas muitos caminhos continuam tortuosos e, para uma terra que se quer para todos os sentidos, ainda falta garantir o mais básico: que todos consigam, pelo menos, chegar ao ponto de partida. A acessibilidade plena não é apenas uma questão de infraestrutura. É, acima de tudo, uma questão de Direitos Humanos, de cidadania e de respeito pela dignidade de todos os cidadãos. Tornar Amarante uma cidade verdadeiramente acessível é um compromisso que exige ação conjunta e contínua entre autarquia, entidades públicas, privados e a própria comunidade.
INFORMAÇÃO ÚTIL
Caso tenha necessidade de contactar serviços especializados, saiba que Amarante dispõe de um Balcão da Inclusão, localizado na Casa da Portela, onde assegura atendimento diário, entre as 9h/13h e as 14h/17h. Já o atendimento por parte de uma técnica ou por parte do Provedor é realizado com marcação prévia, estando disponível às segundas-feiras, das 14h às 17h.
