Entre o dever e a tradição: quem se levanta quando o Natal se senta à mesa

24 de dezembro. Véspera de Natal. A família está reunida, os parentes de perto e de longe juntaram-se à festa e a mesa torna-se pequena para tantos braços a petiscar ao mesmo tempo. A árvore de Natal é o cantinho preferido dos mais pequenos, que, com olhos curiosos, parecem querer rasgar cada embrulho. A ansiedade, a alegria e a euforia tomam conta do espaço à medida que o relógio avança. Em contrapartida, lá ao fundo, ouve-se a porta da rua bater. Não, não é a brincadeira do vizinho vestido de Pai Natal. É alguém que saiu para trabalhar e vai falhar a ceia numa das noites mais mágicas do ano. 

“Chegando ao trabalho o espírito transforma-se, porque é uma missão”

Bebiana Pinto Ferreira é amarantina de gema e enfermeira há mais de 25 anos. Divide-se entre o hospital Padre Américo, em Penafiel, e a CUF, no Porto. É parteira e já ajudou a nascer muitas crianças na noite de Natal. “Acontece fazermos partos no turno da noite e claro que o espírito é diferente nesse dia”, explica. O bebé, mal vê o mundo, “recebe um miminho dado pelo Hospital, às vezes um gorro ou um babete alusivo ao Natal”, acrescenta. Conta que, da sala de partos até ao quarto, o recém-nascido é brindado por um espaço decorado e iluminado, que torna o ambiente mais acolhedor.  “Há muito mais emoção!”, diz com entusiasmo.

Nesta quadra festiva, a enfermeira que, com alegria, segura a mão da parturiente ou carrega o bebé do ventre para o colo da mãe esconde alguma tristeza por estar longe da família. “Custa sempre, mas a partir do momento em que temos filhos custa muito mais. Quando são bebés não percebem muito bem, mas mesmo assim há aquela tristeza de não poder estar presente”, desabafa. Entretanto, os filhos crescem e com eles cresce a dor da ausência, admite Bebiana: “As lágrimas caem-me pelo caminho”.  

Ainda assim, “chegando ao trabalho o espírito transforma-se, porque é uma missão”, garante. A enfermeira vai acabar por ser o colo de alguém que precisa de cuidados naquela noite. “É óbvio que gosto muito daquilo que faço e tento colmatar essa ausência familiar com o facto de dar o meu melhor no trabalho. Foi isto que escolhi. Quando saio de casa sinto nostalgia, mas não posso dizer que é tristeza, é um sentimento diferente, é saudade”, reitera.

Enfermeira Bebiana Pinto Ferreira, no Hospital Padre Américo, em Penafiel

Na lancheira dessa noite, com mantimentos para a jornada de trabalho, viajam sempre iguarias de Natal para um convívio entre colegas, “que são família também”. “São muitas horas partilhadas em conjunto, são muitas histórias e muitos momentos que vivemos juntos, por isso tentamos ter uma noite em que celebramos também a família do trabalho”, explica.
Os planos às vezes não correm como previsto e não seria a primeira vez que a comida ficava intacta. “Já aconteceu de deixar tudo na mesa e ir atender alguém que precisava de nós naquele instante”, confirma Bebiana com um sorriso. No dia 25 de dezembro, de manhã, quando chega a casa, há uma tradição que se repete: “Chego bastante cansada da noite, mas, na manhã de 25, antes de me deitar, fazemos a troca de prendas. É um hábito familiar, principalmente quando não estou na Consoada”. Segue-se um sono reparador até à hora de almoço, para depois se juntar a toda a família e, aí sim, “festejar verdadeiramente o Natal”.


“Para mim é a noite mais bonita do ano e estar longe dos meus… não sei lidar muito bem com isso”

O coração pesado no caminho de casa para o trabalho é partilhado por José Carvalho. Saiu de Amarante, depois do 12.º ano, e foi para o Algarve estudar gestão hoteleira. Percebeu que não era esse o caminho e candidatou-se à Polícia de Segurança Pública (PSP), onde ingressou em janeiro de 1998. Dois anos depois, foi convidado a integrar uma equipa que dava os primeiros passos na investigação criminal, em plena cidade do Porto. Esteve na esquadra da PSP da Corujeira, até pedir para ser colocado em Barcelos, em 2020. Por trabalhar em investigação criminal, o seu rosto deve permanecer o mais anónimo possível.

Tanto pode andar fardado ou “à civil”, participa em diversas operações e está na primeira linha de combate ao crime. Mesmo que seja Natal. “Por norma, o nosso trabalho não implica trabalhar na noite da Consoada, mas não podemos dizer que não aconteça”, esclarece. Por essa razão, José Carvalho guarda sempre uma semana de férias para essa altura. “Tenho a possibilidade de gozar férias no Natal, para ir a Amarante visitar a família. Tenho lá os meus tios, primos e afilhados, que nem sempre podem estar connosco na Consoada”, explica.

Como a família se foi dispersando pelo norte do país, em 2004 o Natal deixou de ser em Amarante e passou para a casa de uma irmã, no Porto. “Fica no meio e assim todos fazemos mais ou menos os mesmos quilómetros. Claro que tenho saudades dos Natais de antigamente, mas as mudanças são assim e na minha família estamos todos bem, só mudamos o sítio”, esclarece.

José Carvalho, em Barcelos

A última vez que trabalhou na noite de Natal foi em 2020 e há uma história que o tocou. “Apareceu um rapaz na esquadra a dizer que não tinha transporte e não tinha como ir para casa”, conta. Perante a situação, pediram-lhe o contacto da família e ligaram a confirmar. “A resposta foi que não o queriam, que não estava convidado. Como não era um menor de idade, não o levámos. Tivemos de lhe dizer a verdade e o rapaz foi embora. Senti-me mal com aquela situação”, relembra. Nessa noite, os três colegas que estavam de serviço fizeram um jantar “simples” na esquadra, porque não houve ocorrências e estava tudo calmo. “Só liguei para casa, para saber se estava tudo bem, depois liguei para o resto da família e segui o meu trabalho, não podia estar a noite toda a sofrer”, remata.

O valor que dá ao Natal vem das raízes que cresceram e ainda se mantêm em Amarante. “Para mim é a noite mais bonita do ano e estar longe dos meus… não sei lidar muito bem com isso. Quem me tira o Natal, tira-me tudo. Não me importo de trabalhar o resto do ano, mas no Natal não!”, desabafa. A mãe ainda fica muito preocupada, também pela natureza da profissão que escolheu, mais exposta a situações de perigo. “Naquele ano ficou muito triste e preocupada por eu não estar. É claro que o Natal não é igual quando falta uma pessoa, quem está à mesa sente isso”, relembra.

É por essa razão que, em dezembro, dedica tempo à família e aos amigos de Amarante, uma forma de compensar o estar longe e as ausências do seu núcleo habitual: “Tenho lá os meus amigos e marcamos sempre um jantar entre todos. Faço questão de manter as minhas amizades de sempre, porque, apesar de viver em Barcelos, as minhas raízes estão em Amarante”, garante. Remata a assinalar que a polícia trabalha muito, além daquilo que se vê: “Passamos muito tempo fora de casa, longe da família, perdemos muitos momentos importantes e, pelo menos no Natal, para mim é essencial estar em casa”.  


“Sinto que já estraguei muitos Natais com a minha ausência”

A poucos quilómetros de casa trabalham Carlos Leão e António Pereira, dois farmacêuticos bem conhecidos em Amarante. A boa disposição reina na farmácia, mas os dois resistem a uma conversa. “É melhor ser a responsável a falar”, diz Carlos. “Não vale a pena falar comigo, porque eu digo tudo igual ao Carlos”, responde António com um sorriso. O certo é que conversa puxa conversa e as estórias foram aparecendo.

Trabalharem perto de casa pode ser visto como uma vantagem,  por comparação com a realidade de Bebiana ou José. Mas na Farmácia Costa trabalha-se sozinho na Consoada. Em 2023, Carlos Leão trabalhou na noite de 24 para 25 e na Passagem de Ano. “Entrei às oito da noite, o colega que estava ao serviço foi-se embora e fiquei eu até às oito e meia da manhã. Sozinho, sozinho. É uma noite triste”, relembra. “Uma pessoa vem para aqui trabalhar e deixa a família toda junta. Estou aqui sozinho e lembro-me muito deles”, sublinha, com um semblante fechado. A única forma de melhorar a situação seria ter a companhia de um colega, mas diz que “não há necessidade, porque só se atende uma ou duas pessoas”. António Pereira concorda e vai mais longe: “não é preciso estragar a noite a duas pessoas”.

Carlos Leão e António Pereira, na Farmácia Costa, em Amarante

Os dois partilham mais de duas décadas de histórias ‘de farmacêuticos’ e algumas envolvem o Natal. “Nessa noite já vendi desodorizantes, leite e fraldas para bebé e até comprimidos para a dor de estômago! É verdade! E nada tinha a ver com a ceia de Natal, porque, pelos vistos, era uma dor que a pessoa tinha há dias e resolveu tratar disso no dia 24 de dezembro à noite”, recorda com riso António Pereira. Carlos Leão lembra com saudade uma tradição que envolve uma antiga vizinha da farmácia, que aparecia sempre às 23h, “para entregar um bolo-rei, figos e água das pedras. Infelizmente já faleceu e vinha sempre”. O gesto servia de conforto numa noite passada entre prateleiras de medicamentos e longe da mesa farta e da confusão do jantar de Natal.

Ambos têm o mesmo hábito quando estão de serviço nessa noite: jantam por volta das 19h, antes de toda a gente, e prepararam uma marmita para afugentar a fome de madrugada. “Custa muito vir trabalhar, porque é um dia especial e nós andamos em contraciclo. Toda a gente corre para casa e nós vimos trabalhar”, referem. Carlos Leão tem família do Porto e de Lisboa que vem nesse dia para Amarante. Além do jantar, falha também a abertura dos presentes: “Esperar para abrir as prendas no dia 25? Isso era antigamente. Ninguém espera”.

Na casa de António Pereira há uma tradição que não se perde: o Pai Natal bate à porta. “Há anos em que não posso assistir a essas brincadeiras. Na minha casa estão normalmente 25 a 30 pessoas, uma mesa cheia e eu sozinho na farmácia”, desabafa. As chamadas de vídeo ajudam a acalmar o coração da mãe, da mulher e dos filhos, que são os que mais sentem a sua ausência. “Sinto que já estraguei muitos Natais”, confessa. Mas este ano a Farmácia Costa está de serviço apenas no dia 26, por isso a Consoada vai ser em família para ambos.


“Estranha-se, depois entranha-se”

A escassos metros da Farmácia Costa fica a sede dos Bombeiros Voluntários de Amarante. Também eles têm uma escala de Natal e estão de serviço na noite da Consoada. Ao contrário dos farmacêuticos, integram uma equipa de dois bombeiros na central, cinco para a primeira intervenção e, no mínimo, mais dois para operar a ambulância.

Desta vez, resolvemos dar voz ao responsável pelo quartel, a pessoa que responde pelas escalas dessa noite e que vê nos olhos dos companheiros o desalento por saberem que vão estar longe da família.  “Temos de compreender, porque cada bombeiro tem a sua família, tal qual como eu tenho a minha e sei que não é fácil. Basta que cada um de nós se ponha no lugar deles, de ter de estar aqui de 24 para 25, em alerta”, começa por explicar o comandante Rui Ribeiro. 

Diz que no mês de dezembro nota-se alguma ansiedade: “Todos estão a pensar em quem é que vai calhar no Natal. Mas o pessoal também sabe que temos de ser nós, somos nós que temos a missão de cumprir esses turnos e de estar aqui 24 horas por dia”. Ao início “estranha-se, depois entranha-se”, remata.

Rui Ribeiro, Comandante do Bombeiros Voluntários de Amarante

Membro da corporação há 17 anos, Rui Ribeiro é já um profissional com experiência, parte dela adquirida no Exército, o que o obrigou a ausentar-se muitas vezes durante o ano. “Para mim o Natal é todos os dias, todos os dias em que estou com a minha esposa e com os meus filhos, porque já fiquei muitos anos longe deles nesta época e estive inclusive fora do país”, esclarece. Aprender a lidar com a ausência não lhe retira o peso de organizar as escalas da Consoada. “Reúno-me com o chefe de piquete e digo-lhe quem está a trabalhar, para que decidam se querem que traga cá o jantar, por exemplo, ou se querem ser eles a tratar disso. Eles organizam-se e dizem do que precisam”, explica o comandante.

Ser bombeiro é uma missão e esse sentimento que os une a todos é mais forte nesta época. “É mais do que normal que os bombeiros que não estão a trabalhar venham até aqui ter com os colegas. Nenhum deles se senta à mesa sem pensar nos que estão aqui e, por isso, passam cá para desejar Bom Natal ou até ficam a fazer companhia durante um tempo”, conta o comandante.

Se houver necessidade de fazer trocas ou de ajustar algum horário por questões familiares, há sempre facilidade em fazê-lo, até porque os últimos anos têm sido praticamente sem ocorrências. “Tenho memória de há alguns anos, no dia 24 de dezembro às 10 horas da noite, haver um incêndio urbano numa habitação, mas nada de muito grave”, recorda. Por regra, a noite não é fértil em sobressaltos e permite que haja algum convívio entre quem está a trabalhar.

Mas esse trabalho ultrapassa, e muito, as paredes do quartel. Quem não está muito atento ao trabalho dos bombeiros talvez desconheça que há equipas permanentes de socorro no Túnel do Marão, constituídas por três bombeiros e dois técnicos responsáveis pelas infra-estruturas. Essas equipas são constituídas pelas corporações de Vila Real e  de Amarante, o que significa que, na noite de Natal, há três operacionais sob o comando de Rui Ribeiro de olhos postos no túnel: “Tem mesmo de ser, apesar de quase ninguém andar na estrada nessa noite. Não podemos descurar a segurança do local e de quem por lá passa”.

Carro dos Bombeiros Voluntários de Amarante, no Túnel do Marão

José Carlos Marinho é bombeiro há mais de 25 anos e sempre trabalhou em Amarante. É bombeiro profissional há uma década, mas começou como voluntário. Perdeu a conta a quantos Natais passou a trabalhar no quartel. Em 2018, tornou-se profissional e integrou de imediato a equipa de proteção e socorro do Túnel do Marão. “Já passei a Consoada no Túnel do Marão e não é nada fácil pensar que estamos ali e a família em casa a festejar”, desabafa.

Para que a data não passe esquecida, por norma trazem comida de casa, juntam-se com a equipa que dá assistência às infra-estruturas e fazem a Consoada: “Não pode faltar o bolo-rei no Túnel. Se eu estiver lá na Consoada tem de haver bolo-rei”, sublinha José Carlos. Mas antes dos doces, há os salgados, que não podem ser o tradicional bacalhau cozido com couves e batatas. “Como temos de aquecer a comida no microondas que temos aqui numa salinha, trazemos normalmente o que resta da hora de almoço e não dá para muito mais”, explica. No último ano em que esteve de escala no Túnel do Marão, aqueceu bacalhau assado com batatas e deu para cear tranquilamente: “Não me lembro de nenhuma ocorrência no Natal, é uma noite muito calma. Há poucos carros na estrada e isso diminui a probabilidade de haver acidentes. E o facto de estarmos três permite passar melhor o tempo, porque falamos uns com os outros e isso ajuda a superar a tristeza.”

Três bombeiros da corporação de Amarante, de serviço no Túnel do Marão

Na casa onde José Carlos Marinho passa o Natal estão mais de 10 pessoas, entre elas a mulher e os dois filhos. “Acho que a minha família já se habituou à minha ausência e sabem que posso estar fora no Natal, por isso acaba por ser natural”, explica. Essa naturalidade até pode ter chegado à cabeça dos adultos, mas parece que ainda causa ansiedade no elemento mais novo da família: “O meu filho este ano já me veio perguntar como era, se vou trabalhar… é que ele tem oito anos e ainda acredita no Pai Natal”, conta. As brincadeiras com o som do trenó a passar pelo telhado, o riso audível do senhor das barbas que deixa cair o saco das prendas, tudo isso ainda acontece em casa de José Carlos Marinho: “Já tranquilizei o meu filho e disse-lhe que o Pai Natal lhe vai trazer tudo o que ele pediu, sem dúvida”.

Este ano, o trabalho começa à meia-noite, mas a abertura dos presentes varia em função da escala de José Carlos e tanto pode ser dia 24 ou dia 25. Mas há ainda outra opção: “Houve um ano em que foi a 31 de dezembro, porque houve necessidade nos Bombeiros e esse foi o único momento em que estávamos todos em casa”. O facto de a casa estar cheia ajuda a mascarar a ausência, mas não resolve tudo: “É claro que, por exemplo, a minha esposa sente muito a minha falta. Tal como a minha filha mais velha, porque já é maior de idade e não se distrai com as brincadeiras, como acontece com o irmão”. 

José Carlos Marinho, de serviço no Túnel do Marão

O Natal em família pode não ser na noite da Consoada, mas o almoço do dia 25 é feito de forma a compensar José Carlos, para que sinta o espírito do que é estar em família: “Como eu janto e almoço com as mesmas pessoas, se não estiver na Consoada, por regra estou no almoço de 25 e fazemos de novo o Natal”.


“A felicidade de uns é a infelicidade dos outros”

Estar fora de casa na noite de Consoada pode, afinal, não ser assim tão invulgar. Fomos descobrir mais estórias de Natal no mítico Hotel Navarras, localizado numa zona central de Amarante. Já ao final do dia e com o sol a esconder-se no horizonte, encontramos três rececionistas. A funcionar há muitos anos, o hotel trabalha 365 dias por ano, 24 horas por dia. Sem descanso, sem paragens. A noite de Consoada não é exceção e Inês Marinho, Carlos Leonor e Diogo Ribeiro já passaram por essa experiência. Em uníssono, dizem a palavra “triste” quando falam sobre o assunto. “Na hora do jantar fica sempre só um na receção e o outro colega que está durante o dia vai jantar com a família”, conta Inês Marinho. À meia-noite chega outro colega, que fica sozinho até às 8h da manhã. “Ficamos sempre aqui na receção, para abrir a porta a quem chega ou até mesmo receber novos hóspedes, embora isso nunca tenha acontecido connosco”, explica Diogo Ribeiro.

Carlos Leonor, Diogo Ribeiro e Inês Marinho, na receção do Hotel Navarras, em Amarante

Os hóspedes habituais do hotel nesta época são “sobretudo portugueses que estão de visita aos familiares”, esclarece Carlos Leonor, o mais experiente dos três rececionistas e que já trabalhou noutros hotéis do grupo. “Neste hotel não há restaurante, as pessoas chegam apenas para dormir e o ambiente é mais sossegado, mas já trabalhei noutro espaço em que o restaurante estava cheio de gente nessa noite e o movimento é muito superior”, recorda.

O quadro da família sentada à mesa em casa na Consoada parece estar a mudar, com os restaurantes dos hotéis a surgirem como alternativa. “Às vezes é um andar inteiro só para uma família que vem jantar no dia 24 e almoça no dia 25 de dezembro”,  esclarece Carlos Leonor. “Quando estou no outro hotel a fazer o horário da hora de jantar, a minha mulher e as minhas filhas jantam com a família e vêm ter comigo até à meia-noite, porque há essa abertura por parte da gerência e elas têm espaço para estarem à vontade”, acrescenta. “Até há pessoas que dão presentes às meninas”, sorri, enquanto remata: “É como diz o povo, a felicidade de uns, é a infelicidade de outros”.

O certo é que o hotel pode ser alternativa para uns, mas é obrigação para quem lá trabalha e isso implica fazer ajustes, como relata Inês Marinho: “Eu tenho primos que também trabalham no Natal e tenho família em Paços de Ferreira e em Felgueiras. Por isso, o que acontece é que, entre primos, temos de ajustar os horários e depois dizer à família onde pode ser o Natal”. E continua: “Já aconteceu virem todos para minha casa, porque eu trabalhava até às oito da noite e assim não ficava sozinha, nem tinha de fazer uma viagem a essa hora”. Carlos Leonor admite que já “obrigou” a família a jantar mais cedo, “antes de entrar ao serviço”, só para sentir o espírito do Natal e a Consoada.

Quem também sofre com estes horários trocados são os mais pequenos. A hora de abrir os presentes está condicionada pela presença de todos, o que não é fácil de acertar na família de Inês Marinho: “O ano passado esperaram por mim até às 16h30 para abrir as prendas, porque trabalhei no dia 25 e em minha casa só se abrem nesse dia”. Até aqui parece não haver problema, não houvesse um afilhado ávido por rasgar embrulhos e perceber se o Pai Natal lhe fez a vontade. “Mal pus a chave na porta, ele veio a correr puxar-me até à árvore de Natal e informou que ia começar a abri-las”, ri-se. Carlos Leonor tem a mesma tradição, abre as prendas na manhã do dia 25 ou então quando sai do trabalho. Já em casa de Diogo Ribeiro os presentes abrem-se a seguir à Consoada, não se espera pelo dia seguinte: “Por acaso consegui sempre conciliar horários e estar em casa para jantar, só venho trabalhar à meia-noite”. O horário da meia-noite é o preferido para quem está de escala, porque “dá tempo para jantar em casa”, concordam. Mas nem sempre é fácil agradar a todos numa noite que tanto pode ser especial como triste para quem está longe de casa.


“Não entendo o trabalho no Natal como um sacrifício”

Terminamos a viagem ao som de música natalícia e das luzes coloridas que pintam Amarante e – por entre a bruma, característica do centro da cidade – nos conduzem a um lugar de culto, sobretudo quando se fala em Natal. Atarefado com o fim-de-semana está o Padre José Manuel Ferreira, que há 16 anos foi nomeado para a paróquia de S. Gonçalo, em pleno coração da cidade. No dia de Natal, muitas igrejas abrem as portas para a tradicional Missa do Galo. “É uma celebração onde, à meia-noite, as pessoas são convidadas a deixar o conforto dos seus lares e vir celebrar o acontecimento do Natal, que é o nascimento de Jesus, e deve celebrar-se nos primeiros momentos do dia 25 de dezembro”, explica.

A iluminação natalícia do centro de Amarante, por entre a bruma

É certo que o Natal tem “para uns uma dimensão comercial, para outros uma dimensão mais gastronómica,  outros são mais voltados para a família. Mas não podemos perder a sua centralidade, que dá sentido e significado àquele dia”, reitera. Explica que os amarantinos têm o hábito de assistir à Missa do Galo, embora o perfil dos fiéis tenha mudado ao longo da última década: “Quando eu cheguei, havia muita gente a sair para o estrangeiro. Hoje vemos chegar novas pessoas e isso vai transformando o tecido social da comunidade e da cidade. Mas vejo que também há pessoas que permanecem desde o princípio, nomeadamente  na celebração da Missa do Galo”.

A noite de Natal é, para os cristãos, uma noite especial. Por essa razão, alguns “fazem o sacrifício de trabalhar, mas eu não o entendo tanto como um sacrifício”, esclarece José Manuel Ferreira. E detalha o raciocínio: “Todas as noites e todos os dias são uma oportunidade para nos colocarmos em humildade, serviço e dedicação aos outros. Se a nossa vida, as nossas capacidades e a nossa inteligência não estiverem ao serviço dos outros, então não há oportunidade nem esperança para que haja verdadeiro Natal”. Por isso, na visão do pároco, todos nós podemos sentir-nos “mais seguros e mais bem servidos por força daqueles que nessa noite se dedicam e se empenham”.

José Manuel Ferreira sai da mesa da Consoada, onde está reunido com a família de sangue, para servir a comunidade. Explica que a sua filosofia de vida passa por dedicar tempo de qualidade, tanto à família como aos amarantinos: ”sendo muito ou pouco, que seja sempre o melhor”. Assume que às vezes é pouco, mas vive-o com alegria: “Com entusiasmo, com presença verdadeira e proximidade também atenta, o tempo que nos está destinado é bem aproveitado”.

Despir o papel de padre não é tarefa fácil. O pároco de S. Gonçalo explica que quando está com a família de sangue é o filho, o irmão, o tio e o padrinho: “Sou essas coisas todas que me realizam também e que fazem parte do meu ser, mas quando estou na comunidade paroquial procuro também ser um irmão, um pastor, alguém que está ao serviço e que tem responsabilidades, procurando dirigir uma palavra de comunhão e de proximidade, de fraternidade na exemplaridade da sua vida”. Esse mesmo exemplo é partilhado com a família, que nos últimos anos tem tido a oportunidade de estar na residência paroquial na noite de Natal e, “às vezes, também participa nas celebrações”.

Na noite de 24 de dezembro, há Missa do Galo na Igreja de S. Gonçalo, em Amarante

Este ano, mesmo vincando que a palavra do padre é moldada pelas circunstâncias, José Manuel Ferreira deixa uma mensagem de Natal: “Porventura às vezes somos sufocados e apertados de todos os lados. Mas se lançarmos uma semente à terra, não podemos esquecer que essa mesma semente tem uma força enormíssima para fazer crescer raízes, mesmo no meio das cinzas, mesmo no meio da morte e da tristeza, da angústia, para fazer brotar também frutos de esperança, de alegria, de comunhão, de fraternidade e de paz para todos”.

Antigamente era mais comum o dia 24 de dezembro ser de trabalho para algumas profissões, que viram o avanço da tecnologia dar-lhes um bilhete para casa. É o caso, por exemplo, dos trabalhadores das portagens e das bombas de gasolina, cuja função pode ser pontualmente substituída por máquinas, evitando a presença física de alguém. Já no caso das gráficas e dos distribuidores de jornais, por exemplo, embora a migração para o digital seja esmagadora, há números que saem em versão papel e têm de estar nas bancas no dia 25 de dezembro, logo pela manhã. 

Na manhã de Natal há quem goste de acordar cedo, fazer uma caminhada, beber um café e ler o jornal. Mas pode ter o sossego interrompido, porque há quem trabalhe. É que, ainda que a recolha do lixo dependa de cada município, é cada vez menos comum acontecer na noite da Consoada e antes às primeiras horas da manhã de 25. Mas é um trabalho que tem d eser feito. Até porque, convém não esquecer, o Pai Natal também também está ao serviço e só entrega os presentes – embrulhados em muito papel e fita – na calada da noite.

Informações úteis:
Linha de Saúde 24
– 808 24 24 24
Bombeiros Voluntários de Amarante – 255 432 115
Farmácia de serviço no dia 24 de dezembro:
DA PONTE | Rua 31 Janeiro 178
Farmácia de serviço no dia 25 de dezembro:
CENTRAL | Rua Armando Pereira dos Anjos F A 279