A fatura da água em Amarante é das mais altas do país, segundo um estudo da Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor. Talvez seja esse um motivo que leva a política local a polemizar a entrega do abastecimento a um consórcio multimunicipal. Os contornos e as consequências do negócio, fechado há mais de dez anos, aquecem as trocas de acusações entre a coligação do Executivo municipal e a Oposição. Comunicados entre os principais partidos, troca de argumentos em publicações e em vídeos nas redes sociais ensaiam o tom para a disputa autárquica no final deste ano. Nas ruas da cidade, uma guerra de cartazes denuncia “a história de desacertos” do Partido Socialista, segundo a Coligação Afirmar Amarante, e “o engano aos amarantinos”, na visão dos socialistas.


Em causa está a concessão, a partir do decreto-lei que, em 2010, criou o Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento do Noroeste, estabelecendo a Águas do Noroeste, S.A. como entidade responsável pela gestão e exploração dos serviços de abastecimento de água e saneamento em vários municípios, incluindo Amarante. A 1 de abril de 2015, iniciou-se a atividade da parceria pública entre o Estado e os municípios de Amarante, Arouca, Baião, Celorico de Basto, Cinfães, Fafe, Santo Tirso e Trofa com a Águas do Norte, S.A., que assumiu a gestão e exploração do Sistema de Águas da Região do Noroeste. O contrato de concessão tem a duração de 30 anos e pode ser denunciado por qualquer uma das partes.
“Estamos a falar do abastecimento de água em baixa, que não é apenas um problema de Amarante, mas também de outros sete municípios que partilham o mesmo tarifário, um dos mais altos a nível nacional”, explicou, à Flor do Tâmega, o social-democrata José Luís Gaspar, à altura presidente da Câmara Municipal de Amarante, cargo ao qual renunciou a 23 de fevereiro. “Isto resulta de uma decisão tomada no passado, que condicionou o abastecimento de água em baixa a uma empresa, as Águas do Noroeste. Essa estrutura não estava devidamente capacitada, o que levou a ajustes tarifários para equilibrar a situação. Infelizmente, isso poderá continuar a acontecer, o que é preocupante do ponto de vista da sustentabilidade das empresas”, disse. “Fomos obrigados a aplicar um aumento tarifário três vezes superior ao necessário. Foi um erro político que, agora, tem consequências”, concretiza, acerca da passagem da entrega do abastecimento a um consórcio multimunicipal Águas do Noroeste, durante o executivo socialista.
“Na altura, em 2011, quando esta decisão foi tomada, era vereador e fui contra. Amarante tinha, então, um dos tarifários mais baixos do país”, sublinha o autarca, eleito pela coligação PSD/CDS-PP “Afirmar Amarante”, em 2013.
O que é o abastecimento “em alta” e “em baixa”?
O sistema de abastecimento de água é o conjunto de estruturas e equipamentos que asseguram a conectividade hidráulica e que ligam os recursos hídricos (rios, por exemplo) a um conjunto de utilizadores, com o objetivo de prestação de serviços de abastecimento de água potável e/ou bruta. Quem gere os recursos hídricos, dos quais é extraída a água que vai ser consumida, é a Agência Portuguesa do Ambiente.
Sistema em alta: sistema que, no caso do abastecimento de água, é constituído por um conjunto de componentes a montante da rede de distribuição de água que permitem a ligação do meio hídrico (de onde é extraída a água) ao sistema em baixa. No caso da drenagem e tratamento de águas residuais, é constituído por um conjunto de componentes que permitem a ligação do sistema em baixa ao “ponto de rejeição”, que é o local ou dispositivo onde os rejeitos (como esgoto tratado, lodo ou efluentes industriais) são descartados após tratamento (como rios, lagos, solo, etc). Ou seja, é o sistema que assegura a captação, tratamento, adução e reserva da água e faz o tratamento das águas residuais recolhidas pelo sistema “em baixa”.
Sistema em baixa: sistema que, no caso do abastecimento de água, liga o sistema em alta ao utilizador final e, no caso da drenagem e tratamento de águas residuais, faz a coleta de águas residuais junto ao produtor (habitações, etc.) e “rejeita-as” num sistema em alta.
Ou seja, o sistema “em alta” trata da captação da água e fá-la chegar ao sistema “em baixa”, que é constituído pelas redes de distribuição de água ao domicílio que levam a água às construções abrangidas por rede pública, aos utentes.
Pode ver mais informação no site da ERSAR – Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos.
A “única hipótese” que o – na altura da entrevista – presidente da autarquia vê para reverter a situação seria avaliar qual a indemnização necessária para resgatar a concessão. “Estamos a estudar essa possibilidade e a medir o impacto dessa decisão”, revelou José Luís Gaspar. “Já fizemos uma avaliação jurídica dessa possibilidade e agora estamos a realizar um estudo económico para compreender o impacto financeiro e a indemnização que teríamos de pagar”.
José Luís Gaspar afastou a possibilidade de o Executivo que – à altura – liderava implementar alterações ao regime de abastecimento da água. “Qualquer decisão tem de ser bem ponderada e não pode ser usada como bandeira eleitoral. Não serei candidato, portanto, se não houver uma decisão política séria e consensual, não irei propor nada que sirva apenas para campanhas eleitorais”, avisava.
Questionado para esclarecer os argumentos sobre o tema que aquece o debate político amarantino, o Partido Socialista (PS) enviou à Flor do Tâmega dois comunicados emitidos pelo partido, em outubro e em dezembro. Nesses comunicados, o PS acusa o executivo camarário de “omissões estratégicas”. “Com o PS na Câmara de Amarante, o preço da água era um dos mais baixos em Portugal, comprava a água em alta e assumia a distribuição em baixa, a preço inferior aos custos que tinha na operação”, escrevem os socialistas. “Em 2013, as normas europeias de equilíbrio tarifário tornariam inevitável o aumento das tarifas para cobrir os custos da captação e distribuição, o que iria onerar inevitavelmente o preço cobrado ao consumidor final. A solução proposta pelo Governo foi uma concessão em parceria pública, entre um conjunto de municípios no qual Amarante estava incluído e o próprio estado central”, acrescentam.
“Caso o Município de Amarante não aderisse à reestruturação da distribuição da água em baixa, ficava sem condições de acesso aos fundos comunitários para as obras referidas. A concessão permitiu melhorar a qualidade do serviço, economizar recursos e reduzir as perdas de água, poupando ao Município de Amarante cerca de um milhão de euros por ano”, refere o PS Amarante, num comunicado emitido a de 19 de dezembro de 2024, no pico da troca de argumentos nas redes sociais entre os dois maiores partidos do concelho e em reação a um vídeo publicado pelo PSD Amarante.
“Ao contrário de outros municípios governados pelo PSD e CDS, que venderam os sistemas de águas a privados, Amarante manteve a gestão pública com a concessão, numa parceria pública, garantindo um melhor controlo”, sublinha o PS. O PS questiona, ainda, “o que fez a autarquia nos últimos 11 anos para reduzir os preços e se existe um plano concreto para sair da concessão sem onerar ainda mais os munícipes”.
José Luís Gaspar lembra que a discussão sobre o assunto começou assim que assumiu funções. “A comunicação social esteve presente na apresentação de um estudo que encomendámos sobre a possibilidade de resgatar a concessão. Desde então, temos analisado a viabilidade dessa decisão”, reiterou. A Flor do Tâmega solicitou o acesso ao estudo referido, mas até à data de fecho deste trabalho a Câmara não disponibilizou o documento.
Saudades de quando “a água era da câmara”
A Maria Alice pesam-lhe os anos e a vida. Viúva a viver da pensão deixada pelo marido, sobrevive a ginasticar os 525 euros que recebe da Segurança Social, que têm de chegar para renda da casa, água, luz e para tudo o resto, que é cada vez menos. “A água é muito cara”, lamenta. “Vivo sozinha, só gasto no banho e a limpar a casa, porque é raro cozinhar e pago sempre entre 40 e 44 euros”, explica.
“Venderam-nos a água e agora pagamos”, sentencia outra munícipe, Maria Cristina, de 84 anos. “É cara e eu ainda poupo em tudo o que posso. Aproveito a água da banca para deitar na sanita… E ainda assim pago sempre trinta e tal euros”.
No negócio, a fatura da água também pesa. Ivan Ribeiro, da “Mix Pão”, padaria em Santa Luzia, bem perto do atendimento ao público das Águas do Norte, “ouve constantemente” comentários indignados de clientes por “pagarem a água mais cara” do país. “Todos têm saudades de quando a água estava entregue à Câmara”, diz, sintetizando os relatos que vai ouvindo atrás do balcão. À distância, até acha engraçada a troca de críticas e a guerra de cartazes que anima a cidade: “É política”. Quanto à fatura da água, diz não complicar. “Pago entre 190 a 200 euros por mês, mas é uma variável que não posso controlar. Não é como a luz, que posso procurar o melhor preço entre os operadores do mercado”, explica.
Amarante no top dos concelhos mais caros
O “soundbite” político enche o espaço público, mas não altera a realidade e os amarantinos fazem correr os dias esticando o orçamento até o mês acabar. Pagam, de facto, das mais altas faturas de água do país. De acordo com um estudo da DECO Proteste, um residente em Amarante que tenha um consumo anual de 120 metros cúbicos de água paga cinco vezes mais do que um morador de Foz Côa. Em Amarante, um morador paga 494,47 euros por ano, enquanto em Foz Côa a fatura é de 94,09. E apesar de a Câmara de Foz Côa não cobrar saneamento aos munícipes, ao contrário da de Amarante, o valor cobrado apenas pela água aos amarantinos é de 207,93 euros por ano, enquanto o valor pelo mesmo serviço em Foz Côa é de 94,09 euros. Amarante, Oliveira de Azeméis, Ovar, Albergaria-a-Velha e Baião são os concelhos onde o preço da água é mais alta, enquanto Foz Côa, Castro Daire, Terras do Bouro, Vila Flor e Vila Nova de Paiva têm as tarifas mais baixas.
No caso em que o consumo de água é mais elevado (180 metros cúbicos por ano), o top dos concelhos com fatura mais elevada é ocupado por Fundão, Oliveira de Azeméis, Santa Maria da Feira, Amarante e Espinho. Os valores mais reduzidos são praticados nos concelhos de Vila Nova de Foz Côa, Castro Daire, Terras do Bouro, Vila Flor e Vila Nova de Paiva.
“As discrepâncias entre municípios dependem de vários fatores. Por vezes, justificam-se por cláusulas contratuais entre as câmaras municipais e as concessionárias, ou pelo diferencial de custos e a comparticipação dos municípios na tarifa aplicada ao consumidor doméstico. A verdade é que estas disparidades não se podem apenas justificar pela reabilitação de condutas ou gestão (in)eficiente, uma vez que ainda existem bastantes entidades responsáveis pelos serviços de água ou de saneamento que não estão a reabilitar as condutas de água ou os coletores (esgotos)”, explica Mariana Ludovino, porta-voz da DECO PROteste, em resposta escrita à Flor do Tâmega.
“Sendo este um serviço essencial em que os consumidores não podem procurar outros fornecedores mais baratos, na DECO PROteste consideramos que as políticas governamentais devem ser delineadas de modo consistente e promovendo o acesso equitativo dos cidadãos, independentemente do concelho onde residem. A implementação de mecanismos de harmonização tarifária no que respeita ao tarifário geral aplicado ao consumidor doméstico permitirá a redução das disparidades tarifárias e assim o acesso equitativo aos serviços de abastecimento de água, saneamento e resíduos sólidos urbanos”, sublinha aquela associação de defesa do consumidor.
“A DECO PROteste tem vindo a exigir políticas governamentais consistentes, congratulando o recente reforço da intervenção da Entidade Reguladora (ERSAR) para reforçar a harmonização de preços”, acrescenta Mariana Ludovino, fazendo referência à reposição da capacidade ao regulador para fixar tarifários. “Com o reforço dos poderes do regulador, que passará a regulamentar, avaliar e auditar a fixação e aplicação de tarifas com efeito a partir de 2026, consideramos que a harmonização tarifária tem as condições necessárias para ocorrer num futuro não muito distante, contribuindo para uma maior justiça no acesso a estes serviços essenciais”, acrescenta a associação de defesa do consumidor.
O acesso equitativo deve também considerar a aplicação generalizada de tarifários sociais para famílias em situação de carência económica e famílias numerosas nos vários concelhos, sublinha a DECO.
Se o preço da água pesa no orçamento, a sua escassez pesa ainda mais no planeta. Além do impacto na fatura, cada gota desperdiçada é um recurso valioso que se perde, tornando essencial adotar hábitos de consumo mais conscientes.


“A otimização do consumo de água deve ser feita independentemente de os preços praticados serem mais ou menos elevados por uma questão de sustentabilidade”, chama a atenção a DECO, que deixa algumas boas práticas aos consumidores para poupar o ambiente e na conta no final do mês. Tomar duches rápidos em vez de banhos; não deixar a água a correr enquanto se lava a loiça à mão, os alimentos ou os dentes; recolher a primeira água do duche até chegar a água quente, utilizando essa água numa descarga de autoclismo, encher um balde para lavar o chão ou até regar as flores são algumas das dicas deixadas pela associação de defesa do consumidor. Garantir que não tem perdas de água nas torneiras ou no autoclismo, nas máquinas de lavar loiça, fazer ciclos de lavagem só com carga completa, sem recorrer a ciclos com pré-lavagem, e limpar os filtros com regularidade para manter a eficiência da lavagem são outras sugestões úteis a ter em conta.