A calma outonal do Parque Florestal de Amarante esconde o ruído da disputa que corre há anos entre a Câmara Municipal e o Estado. Propriedade, responsabilidade por equipamentos e serviços e o usufruto pleno do espaço são algumas das questões em cima da mesa. As negociações, reatadas este mês de novembro, renovam a esperança de uma segunda vida daquela zona de floresta em tempos conhecida como a sala de visitas amarantina.
Após cinco anos de avanços e recuos, entre processos, tentativas de acordos e de negociações, o fim do impasse pode estar a espreitar para lá da copa das centenárias árvores do Parque. O regresso à mesa das negociações, neste mês de novembro, abriu uma nova oportunidade de resolução do problema e suspendeu a decisão da Câmara Municipal de Amarante (CMA) de retomar a ação judicial interposta ao Estado há cinco anos, e resumida à Flor do Tâmega ainda antes de voltar a abrir-se o caminho das pedras.
“São fundamentos da referida ação judicial o incumprimento pelo Estado, através do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I. P., das condições elencadas no ‘auto de entrega’, em especial, o parque encontra-se, fruto de uma gestão displicente e omissiva por parte do ICNF, degradado, quer ao nível das suas infraestruturas, quer ao nível do seu asseio e limpeza, tendo, de facto, perdido a sua identidade, o que contribuiu para a insegurança naquela zona e na sua envolvente”, esclareceu a CMA, antes do regresso ao diálogo, anos após a primeira ronda de conversações.
A CMA e o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) chegaram a ter um acordo para a devolução do espaço à rotina e aos prazeres dos amarantinos. Segundo o estabelecido, o município propunha-se assegurar a “limpeza e a manutenção dos espaços verdes e florestais, das respetivas áreas de circulação, bem como a criação, reforço, beneficiação e manutenção das infraestruturas e dos equipamentos de suporte à visitação”.
A utilização e beneficiação dos edifícios existentes, nomeadamente a Casa do Guarda, para funcionar como um centro interpretativo jovem e para os escuteiros, um parque infantil e a utilização de espaços exteriores para instalação de campos de padel, foram alguns dos compromissos assumidos pela autarquia no acordo. Mas, segundo a CMA, o Ministério do Ambiente não aprovou, num primeiro momento, a redação final do documento acordado com o ICNF.
Atualmente, o ICNF procede a pequenas obras de beneficiação, concentradas essencialmente no edifício da administração florestal de Amarante. A intervenção contempla, ainda, a instalação de sistema de rega automático, a beneficiação de caminhos e de um pequeno lago existente no Parque e a instalação de focos de luz. Mas isso ainda está longe do que desejam os autarcas.
“Reabrir o parque infantil é devolver o parque à cidade”
Américo Paulo Ribeiro, presidente da União de Freguesias de Amarante – S. Gonçalo, Madalena, Cepelos e Gatão, também sonha com “um local para as famílias, onde seja possível um equilíbrio entre as brincadeiras das crianças e o lazer dos adultos”.
Filho de um guarda-florestal e técnico superior do ICNF em comissão de serviço na junta de freguesia, Américo Ribeiro sente o Parque Florestal como um lugar de saudade. “Amarante merece aquele espaço. Todas as pessoas até à minha geração guardam boas recordações do Parque. Temos de defender aquele local, que é um lugar de saudade”, argumenta.
União de Freguesias e Câmara Municipal de Amarante têm posições concertadas na frente negocial com o Estado. “Acredito que no decorrer do próximo ano teremos as condições necessárias para construir um parque infantil no local onde existiu o antigo. Reabrir o parque infantil é devolver o parque à cidade”, disse.
No livro comemorativo do centenário do Parque Florestal de Amarante, o presidente da câmara deu voz ao sentimento de perda que a degradação daquele espaço provoca nos amarantinos. “Está presente no nosso imaginário: os passeios de domingo, o viveiro florestal, as festas de verão, a ‘Noite no Parque’, a prática desportiva, o ténis, o lazer, as espécies arbóreas, os jardins com o seu calendário vivo, os animais e as vistas panorâmicas”, escreve José Luís Gaspar. “Um passeio pela cidade acabava inevitavelmente lá. Era o nosso parque, aquele lugar que enchia de orgulho o peito dos amarantinos, porque não havia igual por outras paragens”, partilha.
“O município de Amarante, há cerca de 100 anos, concedeu este espaço aos Serviços Florestais por acreditar na sua plena capacidade de realização. Hoje, por força das inegáveis circunstâncias, assiste-se ao inverso – é o município que reivindica a sua gestão”, escreveu o autarca, no livro “Parque Florestal de Amarante – Uma obra centenária”, dois volumes engalanados com as fotos de Joaquim Teixeira Pinto e de Eduardo Teixeira Pinto, pai e filho.
Primeiros campos de futebol e de ténis da cidade
Cinco hectares de mata de carvalhos, junto ao Tâmega, onde, em 1809, as tropas do general Silveira lutaram contra os invasores napoleónicos, estiveram na génese do Parque Florestal. O local tornou-se num espaço de lazer e fruição para os amarantinos. Em 1912, foi criado o campo de “lawn tennis”, gerido pelo Clube de Caçadores de Amarante. Estava lançada a semente.
O Parque Florestal de Amarante foi criado pelos Serviços Florestais em 1916, no âmbito do estabelecimento de dois perímetros de arborização constituídos por terrenos baldios, nas serras do Marão e da Meia Via, pelo ministro do Fomento, Francisco José Fernandes Costa. Na altura, a Câmara Municipal cedeu a Quinta de Codeçais para a criação de um parque e de um viveiro florestal, por iniciativa de António Lago Cerqueira (1880-1945), dinamizador dos serviços florestais em Amarante, produtor e promotor dos vinhos da região.
O primeiro campo de futebol da cidade nasceu também no Parque Florestal. Entre 1925-29, acolheu os jogos de equipas locais não filiadas, como o Amarante Foot-Ball Club e, depois, o Sporting Club Amarantino.
Anos mais tarde, o Estado comprou a restante área envolvente, a nascente e a sul do parque, correspondendo às parcelas do grande viveiro florestal, construído entre 1939-41. Amarante, e o Perímetro Florestal do Marão e da Meia Via, tinham dezenas de casas que albergavam os guardas-florestais do Parque, que se estendia por centenas de quilómetros de estradas e caminhos florestais, entre pontes e aquedutos. O Parque tinha diversos viveiros florestais, permanentes e temporários, para criação de trutas e para a produção de milhares de essências florestais. Os lucros gerados pela gestão florestal eram repartidos com a autarquia.
“A maior empresa da região eram os serviços florestais. Foram os grandes impulsionadores da economia”, diz Carlos Silva, atual responsável pelo Parque Florestal de Amarante e coautor do livro “Uma obra centenária”.
Nos anos 80 do século passado, houve uma troca de terrenos entre a Câmara de Amarante e o Estado, correspondente ao atual Parque do Ribeirinho e às Piscinas Municipais, concluídas nos finais dos anos 90, por uma área de viveiros e de estufa, no lugar das Veiguinhas, freguesia da Madalena.
O Centro Nacional de Sementes Florestais está instalado no Parque Florestal de Amarante. O serviço, único no país, disponibiliza aos viveiros do Estado, aos viveiristas privados e ao público em geral, sementes de 80 espécies florestais, em quantidade e qualidade, maioritariamente autóctones.
O mundo de fantasia da “princesa” Maria João
Tílias, faias, plátanos, cedros e sequoias, canteiros com bordadura de camélias ao estilo romântico, o mirante com as namoradeiras, pouso de juras de amor de gerações de amarantinos, e vários edifícios de arquitetura típica de meados do século XX permanecem imutáveis nos dez hectares do Parque Florestal de Amarante. Mas já não exercem o fascínio que durante décadas fizeram do parque a tal sala de visitas da cidade e que as fotos de Joaquim Teixeira Pinto e de Eduardo Teixeira Pinto imortalizaram.
Atualmente, as crianças dos ATL da cidade visitam o parque em algumas tardes de verão. E o almoço “Idade de Ouro”, piquenique oferecido pela autarquia aos idosos do concelho a 8 de julho, é realizado lá, à sombra do arvoredo. A atividade quase que fica por ali, naquele que foi o “mundo encantado” de Maria João Trigo.
Filha do administrador florestal que nos anos 90 esteve à frente do Parque de Amarante, António Trigo, Maria João recorda a “felicidade imensa” de uma infância vivida em comunhão com a natureza. O jardim à medida da imaginação de uma criança, às vezes, escondeu tesouros protegidos por mapas; outras, foi uma ilha inacessível aos mortais comuns, ou, num plano mais terreno, serviu de mercearia, repleta de ervas, folhas e paus a fazer de massa, arroz e feijão. “Sempre brinquei com a natureza, brinquei imenso”, diz.
“Nem sequer o facto de não ter vizinhos com quem brincar na rua, como os meus colegas da escola, pesava. Criei o meu mundo, um mundo de fantasia, com ilhas do tesouro”, partilha Maria João Trigo. “Andava sempre atrás dos jardineiros e passava muito tempo a transplantar pés, que depois observava até ver nascer o botão e as flores”, conta, ao desfiar memórias da infância no parque.
Quando hoje passa pelo parque, Maria João sente “uma dor muito grande”. “Não há vida no parque… Quando antes existia tanta gente! Havia um parque infantil, animais, pessoas a passear, a correr, a andar de bicicleta”, lamenta a arquiteta paisagística, que sofre com o potencial desaproveitado do jardim que a viu crescer.
As memórias são mais doces e voltam à conversa. Maria João recorda-se de ver pessoas vestidas com elegância num baile de gala “muito bonito”, que encheu o jardim cheio de velas e a casa de flores. “Tudo lindo e tudo no meu jardim. Senti-me muito importante, muito princesa”, conta.
Laura Trigo e as memórias do baloiço na bruma
O livro do centenário do Parque Florestal trouxe à estampa várias fotos das “Noites no Parque”, organizadas pela Associação dos Bombeiros Voluntários de Amarante, que correspondem ao instantâneo de glamour guardado para a vida pelos olhos de menina de Maria João Trigo.
Laura Trigo, irmã mais nova de Maria João, viveu no Parque até aos 18 anos. “Andava sempre a brincar naquele jardim enorme até ao rio”, conta. “Lembro-me de acordar às 7 da manhã, ir a correr para o baloiço e ficar a lá andar, no meio do nevoeiro”, partilha.
As recordações de Laura pintam tempos cheios de peripécias e surpresas. Como quando levaram para casa seis crias de javali que tinham perdido a mãe. “A casa ficou a cheirar a javali, mas para nós era uma alegria dar o leite aos javalis bebés”, diz, lembrando todos os animais que havia no jardim e a dieta alimentar dos quais cuidava com afinco, não lhes deixando faltar bolotas.
Locais onde havia animais no Parque estão desertos (DR)
Laura ainda vai muitas vezes ao parque, andar de bicicleta com os filhos Matias e Duarte, de seis e cinco anos. “Já não há animais e o parque tem muito menos gente… É uma pena”, afirma.