Grande fogo de 1985 que pintou Marão de negro fez da serra exemplo nacional

Inspiração de Teixeira de Pascoes e de Miguel Torga, casa natural dos amarantinos, a serra do Marão pacifica a paisagem. Pinheiros, castanheiros, carvalhos e bétulas embelezam e são sustento para a população. Crescem encravados nos montes, entre tojo, mato e fragas, fintando a classificação “alta” e “muito alta” de perigosidade estrutural de incêndio. Na memória da população de Amarante vive o grande fogo de setembro de 1985. Roubou para as chamas três mil hectares do Marão, sobretudo na freguesia de Ansiães, mas foi a partir da tragédia que algumas metodologias inovadoras à época foram implementadas, tornando-o “num caso exemplar” de prevenção de incêndios, ainda nos dias de hoje.

“Esse incêndio teve uma consequência interessante, que foi a preparação de um plano de arborização. Na altura foi considerado modelo em Portugal”, explica Paulo Fernandes, investigador do CITAB – Centro de Investigação e Tecnologias Agroambientais e Biológicas  da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). 

Paulo Fernandes tinha acabado de chegar a Vila Real para estudar, quando ocorreu o incêndio de 1985: “Lembro-me de ver o clarão…. Foi um incêndio muitíssimo falado na época. Por ser inédito e por ter sido tão grande. Cerca de três mil hectares, o que para os dias que correm não é assim tão grande”. 

Nos últimos dez anos, houve dois grandes incêndios rurais, designação aplicada a fogos com área ardida superior a 500 hectares (ha). Em 2014, arderam 946 ha no perímetro florestal da serra do Marão e Meia Via, em Amarante; e, em 2022, houve um outro fogo com área ardida de 1697 ha no perímetro florestal do Marão, em Vila Real, e Ordem, que abrange os concelhos de Baião, Mesão Frio, Peso da Régua, Santa Marta de Penaguião e Vila Real. Entre 2014 e 2023, arderam um total de 1441 ha no perímetro florestal das serras do Marão e Meia Via (Amarante); e 3171, nas serras do Marão e Ordem (Vila Real). 

Seis meses após o incêndio de 1985, o “Projeto de aproveitamento dos recursos naturais no perímetro florestal das serras do Marão e Meia Via”, liderado pela Circunscrição Florestal do Porto, foi desenvolvido numa área de 9700 hectares. Do plano fazia parte a adoção de uma perspetiva integrada de intervenção florestal, com identificação de objetivos que iam desde a arborização ao desenvolvimento da silvopastorícia ou à salvaguarda do património cultural e monumental; a concretização de uma intervenção interdisciplinar, com a participação de especialistas em geologia, botânica ou sociologia rural e a incorporação de orientações técnicas resultantes da análise do comportamento do fogo.

“Na altura, a Circunscrição Florestal do Porto tinha como responsável o engenheiro Moreira da Silva, um pioneiro em muitas coisas, inclusivamente na criação da primeira associação florestal em Portugal, que foi a Forestis”, contextualiza Paulo Fernandes. “Foi o engenheiro Moreira da Silva quem introduziu em Portugal o fogo controlado, ainda nos anos 70. Era uma pessoa sempre à frente do seu tempo. Idealizou, com os técnicos que com certeza trabalhavam com ele, um plano de arborização para a Serra do Marão, muito baseado naquilo que observaram no incêndio de 1985. Ou seja, a forma como certos tipos de floresta resistiram ao incêndio, ou reduziram a intensidade do incêndio ou permaneceram como ilhas verdes por arder”, acrescenta o investigador do CITAB.

O grande projeto de rearborização da área ardida em 1985, em cerca de 2600 hectares, devolveu de novo o verde à serra e foi inovador e multidisciplinar, de modo a adequar os espaços a diferentes espécies e usos florestais. Hoje, predominam na serra do Marão espécies florestais resinosas, com destaque para o pinheiro-bravo, o pinheiro-silvestre e o pinheiro-larício. Algumas linhas de água são ricas em folhosas, com destaque para os castanheiros na bacia da Póvoa e as bétulas na de Aboadela. A fauna também é muito diversificada, sendo abundante em coelhos, perdizes, raposas, corço, javalis, e ainda diversas aves de rapina, com destaque para a águia de asa redonda.

“É um caso especial, a nível nacional, não só por causa deste plano, mas porque foi também a primeira área que teve a aplicação, já com certa escala no território, do fogo controlado”, sublinha Paulo Fernandes.

“A Serra do Marão estará sempre ligada ao impulsionar do fogo controlado em Portugal, tendo sido aí realizados alguns dos primeiros cursos no país, bem como queimas experimentais para o desenvolvimento dessa técnica, com a participação de especialistas nacionais e estrangeiros”, precisa o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), em resposta à Flor do Tâmega.

Uma das ações de fogo controlado no Marão que Paulo Fernandes acompanhou como investigador. Autor: Paulo Fernandes/DR

O fogo controlado é a utilização do fogo de forma planeada, numa certa parcela delimitada, previamente definida, em condições ambientais, nomeadamente de tempo atmosférico ou meteorológicas, suaves, em dias relativamente secos, mas frios. “Varia, mas, do outono à primavera, são fogos que não têm impactos negativos no ambiente”, explica o investigador da UTAD. “Os fogos são conduzidos de uma forma o menos agressiva possível. Ou seja, em vez de deixarmos que o fogo se propague, encosta acima e com vento, é ao contrário: desce devagarinho, encosta contra o vento. Portanto, são fogos lentos, de pouca intensidade, em dias, comparativamente com o verão, frios e húmidos e com pouco vento. Servem objetivos que variam, mas que no Marão são, essencialmente, de renovação de pastos e de redução do risco de incêndio”, descreve Paulo Fernandes.

A maronesa é uma raça de montanha, primitiva, natural da serra do Marão. Foto: Maria Cláudia Monteiro/DR

Nos últimos 10 anos, foram executados cerca de 1500 hectares de fogo controlado nos dois perímetros florestais que integram a Serra do Marão, segundo dados do ICNF. Desde 2006, a técnica foi usada para a implementação e manutenção da rede primária de faixas de gestão de combustíveis, renovação das pastagens e proteção de povoamentos florestais, em terrenos comunitários sob gestão do Estado.

Desde 2006, vigoraram três Planos de Fogo Controlado (PFC), com um planeamento de 1950 hectares de gestão de combustível, os quais tiveram a sua execução assegurada pelo ICNF através de vários programas.

Na última década, foram executados cerca de 1500 hectares de fogo controlado no Marão. Foto: Paulo Fernandes/DR

“O Marão está muito bem protegido dos incêndios, pelo menos dos graves de maior dimensão, porque tem esta atividade de fogo controlado e ainda tem rebanhos que utilizam depois estas áreas queimadas, por comparação com a maioria do país”, considera Paulo Fernandes.

A floresta ocupa a maior parte dos 30 133,15 hectares (ha) do concelho de Amarante. Cerca de 67,16% do território é Floresta e Incultos, com um total de 20 236,76 ha. 

Os escuteiros de Amarante dão uma ajuda na vigilância da floresta e na proteção de incêndios. Durante 15 dias de agosto, dez jovens do Agrupamento 448 Amarante vigiam a serra. “O Marão é o habitat do Agrupamento. As florestas e o ambiente verde do Marão são a nossa casa”, conta João Carvalho, chefe do Agrupamento. “Fazemos raides, seguimos as pegadas dos animais, vemos a riqueza que a serra do Marão nos pode dar… Aprendemos a tratar o Marão como se fosse a nossa casa”, explica.

Escuteiros vigiam a serra do Marão há 16 anos. Foto: Agrupamento 448 Amarante/DR

Nos últimos 16 anos, todos os meses de agosto partem para a serra, num programa com o apoio da Câmara Municipal de Amarante, que garante transporte e alimentação. Além da exploração da fauna e da flora da serra, fazem vigilância e ajudam em ações de sensibilização da população. “Quando há panfletos ou outro tipo de informação, abordamos a população, que já está mais sensibilizada. Antes, por exemplo, ainda havia a ideia de que se podia fazer queimadas a qualquer hora do dia”, constata João Carvalho.

Segundo a autarquia, têm sido realizadas várias ações de sensibilização e notificação junto de proprietários, para procederem à limpeza das faixas em redor de edifícios e implementarem medidas preventivas.

Há cinco anos, os escuteiros detetaram o início de um incêndio, em Carvalho de Rei. “Numa dessas vigilâncias, na última noite, percebemos que o fogo andava nas redondezas. Chamamos o 112 que ativou os meios”, relata.

Marão é o habitat do Agrupamento 448 Amarante. Foto: Agrupamento 448/DR

Em Aboadela, o espírito comunitário preserva a natureza

O fogo de 1985 foi o primeiro de grandes dimensões no Marão. Até àquela data foram-se reunindo condições de os evitar. “A quantidade de gado que existia, combinada com o corte de mato que as populações faziam, para os currais e para fazer estrume, que depois fertilizava as terras agrícolas, ajudavam. Havia uma grande remoção de biomassa dos espaços florestais, diretamente pelos animais ou através do corte pelas pessoas ou do uso do fogo. Tudo em conjunto limitava muito a dimensão dos incêndios e da área ardida total”, esclarece Paulo Fernandes.

Em Aboadela, a gestão e o uso comunitário do baldio local mantêm algumas destas condições. Há vacas da raça maronesa e cabras que pastam em parte dos 1600 ha daqueles terrenos. “O último incêndio aqui foi em 2015”, recorda José Álvaro Marinho, presidente do conselho diretivo do Baldio de Aboadela, o segundo maior de Amarante, só superado, em área, pelos 2200 ha de Ansiães.

De toda a área florestal do concelho, cerca de 6500 ha são áreas de baldios de Aboadela, Ansiães, Canadelo, Olo, Fridão e Rebordelo.  Com exceção dos baldios de Ansiães e Canadelo, todos são cogeridos pelo ICNF. “O nome do Estado sempre dá algum respeito”, diz José Marinho. “O sentido comunitário está a desparecer”, lamenta. Mas o espírito que presidiu à criação dos baldios e a forma como são geridos ainda se sente em Aboadela. Os compartes decidem o que fazer com os terrenos e podem colher lenha, madeira ou matos, cumprindo regras aprovadas por todos em assembleias gerais, cada vez menos concorridas, explica José Marinho.

Nos últimos dois anos, o baldio da Aboadela tem explorado a extração de resina. Foto: Maria Cláudia Monteiro/DR

Há dois anos, o baldio decidiu tomar conta da exploração da resina nos vários hectares de pinhal que fazem o verde de Aboadela. “Estava entregue a uma empresa privada, que nos pagava uma parte”, conta José Marinho. “Mantivemos a equipa de cinco pessoas. Conseguimos pagar os salários e as despesas e ainda temos algum lucro”, acrescenta, com orgulho do trabalho feito. “Tem de haver receita para lhes pagar”, diz, com a segurança de quem sabe gerir bem a floresta comunitária.

Ao abrigo de programas europeus, conseguiram construir bebedouros para o gado – que anda livremente pelo baldio – arranjar caminhos, fazer corta-fogos, replantar árvores perdidas para o fogo ou espécies folhosas em redor das aldeias. Da receita que tiram da floresta todos os anos, conseguem ainda apoiar obras na freguesia, como a pavimentação de caminhos e a abertura de passagens agrícolas.

José Álvaro Marinho, presidente do conselho diretivo do Baldio de Aboadela, mostra um exemplo do corta-fogo. Foto: Maria Cláudia Monteiro/DR

Sustentável, o baldio emprega cinco sapadores florestais, cujos salários são suportados em 50% pelo ICNF. O trabalho destas pessoas está à vista na serra. O mato está cortado, a floresta cuidada e a plantação de pinheiros que foi feita na zona ardida há nove anos foi recentemente mondada. “Convém limpar alguns, quando estão muito juntos, para poderem desenvolver-se melhor”, diz José Marinho, estabelecendo uma comparação com gestões privadas, embora com outro tipo de árvores. “O problema do eucalipto é não ser bem tratado. Muitos particulares deixam crescer de qualquer forma, muito juntos e isso facilita a propagação dos fogos”, acrescenta.

Em Aboadela o pinheiro é rei das encostas. Mas junto dos vários cursos de água, como o rio Ovelha, as folhosas resistem. “Aquelas faias têm 40 anos”, aponta Álvaro Marinho. As árvores erguem-se do fundo do vale, finalmente respiram. “Estavam abafadas pelos pinheiros. Pedi autorização ao ICNF para os cortar e agora as árvores desenvolvem-se melhor”, acrescenta, ciente da importância das folhosas para o ambiente e para a diversidade.

“Há um momento, durante o Estado Novo, em que é tudo arborizado e se impôs restrições de utilização que levaram à diminuição dos rebanhos e à emigração”, explica Paulo Fernandes. “Em parte por causa destas restrições, a floresta começou a expandir-se, a crescer e a acumular combustível, como dizemos na linguagem técnica dos fogos, o que veio a possibilitar que esse primeiro grande incêndio ocorresse em 85”, acrescenta o investigador da UTAD.

“É um padrão. Estamos a falar do Marão, mas este quadro é comum a todas as serras no norte e centro do país que foram arborizadas pelos serviços florestais”, conclui.