A história que contámos e a que podíamos ter contado

Neste Editorial, dando seguimento ao da edição passada, vamos continuar a explicar aos nossos leitores as rotinas do jornalismo: a forma como os jornalistas trabalham e constroem as notícias. Vamos fazê-lo a partir da reportagem deste mês, sobre o preço da água em Amarante, um dos mais elevados do país, um assunto que foi notícia em diversos órgãos nacionais, a partir de um estudo da DECO. Mas que há muito é uma preocupação dos amarantinos.

Porque é exatamente aí que tudo começa: ao perceber o que interessa às pessoas. E não há dúvidas sobre a relevância deste assunto para as pessoas de Amarante. Depois de investigar o tema – para o compreender – há que decidir quem deve ser ouvido sobre ele: porque pode esclarecê-lo ou tem responsabilidades no processo e – por isso – tem o dever de prestação pública de contas. E é aqui que, muitas vezes, o plano vai do ideal ao possível. Mesmo que o possível seja já um bom trabalho jornalístico, como é o caso desta reportagem.

Então, o que teria sido o ideal ou próximo disso? Teria sido importante termos tido acesso ao estudo que solicitámos à Câmara Municipal de Amarante e citado por José Luís Gaspar. Poderia não ter acrescentado informação nova. Mas poderia também ter suscitado outras perguntas ao – à altura – presidente da Câmara. Este julgamento – sobre o valor da informação do estudo – é uma decisão que caberia à jornalista, que não pôde tomá-la. No fim da linha, são os cidadãos que poderão ter saído prejudicados, porque podem não ter tido acesso a informação relevante.

Neste caso, teríamos oportunidade de colocar mais questões ao entrevistado, porque foi-nos efetivamente concedida uma entrevista. Ora, isto não aconteceu noutras situações. E o que é que se perde nestes casos? A possibilidade de fazer perguntas de seguimento e de pedir explicações ou clarificações aos entrevistados. Ao recebermos informação via comunicados (os mesmos publicados há meses, que não trazem novidade), como aconteceu no caso do PS, ou declarações via email – como no caso da DECO -, perde-se esta possibilidade. 

Há que reconhecer que esta prática também é incentivada pelas redações. Com o sucessivo despedimento de jornalistas, e num cenário em que a carga de trabalho não diminuiu, as declarações por email (declarações, porque não são entrevistas) são vistas como uma forma de poupar tempo, se pensarmos que se recebe um texto organizado, que se presta ao corta e cola de citações. Mas controlado pelas fontes, que evitam assim o escrutínio de perguntas espontâneas, de contraditório. Não foi o que se passou neste caso: foram solicitadas entrevistas a todas as fontes, mas apenas José Luís Gaspar e três cidadãos de Amarante falaram connosco de viva voz. Mais uma vez, quem perde é o público.

Depois há que construir a reportagem: primeiro na cabeça e depois “no papel”. No caso desta, há a destacar a importância de “traduzir” a linguagem técnica, para que possa ser entendida pelo público em geral. Acontece habitualmente com cientistas (muito habituados à linguagem científica) e também com políticos, por motivos diferentes. Neste caso, sentimos a necessidade de explicar o que é um “sistema em alta” e “em baixa”, conceitos que, à partida, não serão percebidos pela maioria dos nossos leitores. Para isso, tivemos também primeiro de os entender.

No fim, e apesar de não termos o ideal, temos uma boa reportagem, sobre um tema relevante. Mas que reflete a indisponibilidade crescente de fontes com responsabilidades públicas para falarem com jornalistas e fornecerem documentos que deviam ser de acesso público, ou seja, a desvalorização da função do jornalismo. Porque – tal como ficou já evidente na reportagem sobre o Hospital de São Gonçalo – parece haver disponibilidade para debater nas redes sociais, onde não existe interpelação por parte de jornalistas. Onde vigora o “soundbite” e não há verificação. 

Temos assistido diariamente – com um misto de incredulidade e preocupação – ao estádio avançado desta estratégia, implementada até ao extremo pela administração Trump. Mas por cá, por Portugal, também se vai sentindo esta brisa. Sente-se no enfado com que se fala – ao mais alto nível – de jornalistas que fazem perguntas difíceis e escrutinam a vida de políticos. Ou seja, que fazem o seu trabalho em nome do público, que tem o direito a ser informado. Enfraquecer o papel do jornalismo e o trabalho dos jornalistas enfraquece a democracia. No caso dos EUA esse é claramente o objetivo. Por cá, quero acreditar que ainda estamos longe e que vamos muito a tempo de emendar este tique e aprender a conviver melhor com esta coisa chata de nos fazerem perguntas às quais temos – por via dos cargos que decidimos ocupar – o dever de responder.