A nova vida das escolas primárias desativadas

Ninguém retirou a placa que indica ‘escola primária’ àquela que foi a EB1 das Chedas. Mas já não há gritos e risos de crianças entre as quatro paredes nem a voz da professora a ensinar as primeiras letras e números. Fechada em 2010, a escola ficou vazia até 2014, quando a Junta de Freguesia de Gondar cedeu as instalações à Associação Ajuda Animais (AAA). Agora quem enche o espaço de vida são os cães resgatados à rua que procuram novas famílias. Ana Teixeira, sócia-fundadora da AAA, frequentou em criança a escola e é na sala onde aprendeu a ler e a escrever que agora organiza o funcionamento da associação. 

A transformação do edifício da primária de Chedas em abrigo é apenas um dos vários exemplos de novas utilizações a que vão sendo votadas as escolas encerradas no município. Centros de saúde, sedes de junta de freguesia, albergues, núcleos museológicos ou espaço para atividade física são algumas das muitas funcionalidades a que os edifícios estão a ser destinados. Desde 2002, segundo os dados da Divisão Municipal de Educação, Juventude e Desporto, fecharam em Amarante 57 escolas primárias no âmbito dos planos de reordenamento do parque educacional, que concentraram as aulas em agrupamentos escolares ou zonas mais populosas.

Os edifícios, propriedade da Câmara Municipal, têm tido destinos muito diferentes. Alguns, poucos, foram alienados para serem transformados, por exemplo, em habitação privada, como aconteceu com a escola de São Veríssimo, no centro da cidade. A Câmara tomou a responsabilidade de requalificar outros, para cumprir objetivos específicos de interesse para todo o município. É o caso da escola primária de Covelo do Monte, onde nascerá em breve o Centro Interpretativo do Mel e Apiário do Marão. Mas, na maioria das situações, a nova vida das escolas passa pelas juntas de freguesia.

Entre 2002 e 2014 foram desativadas, por todo o concelho de Amarante, 57 escolas primárias.

O apoio às comunidades locais

Muitas das antigas escolas primárias têm sido cedidas às juntas em regime de comodato, para servir necessidades específicas das comunidades locais. Américo Paulo, da União de Freguesias de São Gonçalo, Madalena, Cepelos e Gatão, explica que nas três escolas primárias desativadas há espaço para as associações locais como a Gatilho, que, em breve, ocupará a antiga escola da Madalena, atualmente em obras. E as necessidades podem mudar ao longo do tempo, voltando os edifícios a funções próximas das originais:  a escola de Gatão de Cima, onde funcionava o Centro Interpretativo do Vinho Verde, vai voltar à ‘posse’ das crianças quando estiver finalizado o projeto de a transformar numa creche e jardim de infância.

Há escolas que também podem ter utilizações menos regulares, mas igualmente relevantes. Como explica Ângelo Magalhães, da União de Freguesias de Bustelo, Carneiro e Carvalho de Rei, podem servir de apoio a atividades ocasionais de trail, sustentando assim o turismo na região, ou de apoio a corporações em serviço de combate às chamas. Foi o que aconteceu em meados de setembro, quando vários incêndios assolaram as regiões norte e centro do País. Em Travanca do Monte, os bombeiros puderam usar a antiga primária como ponto de apoio. “Abrimos a escola aos homens que vieram do Porto, que puderam assim ter um espaço e algumas serventias“, adianta Ângelo Magalhães.

Em todas estas situações, o objetivo, explica Henrique Monteiro, presidente da União de Freguesias de Aboadela, Sanche e Várzea, é ocupar os espaços e recuperar a sua importância para a vida da comunidade. Já não há crianças a justificar o funcionamento da escola, mas há necessidade de parques infantis para momentos de diversão e os mais velhos podem ainda, por exemplo, regressar às antigas salas para agora terem aulas de ginástica. Em outros locais, as quatro paredes continuam a ser importantes para a transmissão de conhecimento: se antes era através dos professores, agora é com núcleos museológicos que preservam tradições e outros saberes. É o caso da antiga escola primária de Sanche, onde uma das salas é ocupada com aulas de viola amarantina, em homenagem a esse instrumento, e onde o grupo Pró Pagode se reúne para ensaiar. Também nas instalações de Bustelo há um espaço dedicado ao artesanato, nomeadamente às artes do tear e das meias de lãs, e à viola amarantina. Em Gondar, na que foi a escola de Vila Seca, o oleiro César Teixeira mantém viva a tradição do barro negro, documentada desde o século XVII, mas atualmente em risco.

A estrutura da antiga escola primária de Vila Seca mantém-se inalterada. Atualmente acolhe o oleiro César Teixeira. Foto: Flor do Tâmega/DR.

Henrique Monteiro conta ainda que outras escolas primárias pertencentes a esta União ganharam também novas funções. A escola da Aboadela é hoje junta de freguesia, partilhando o espaço com a Conselho Diretivo do Baldio de Aboadela e o Clube de Caça e Pesca. Na de São João de Várzea funciona a Unidade de Saúde do Marão. O importante, explica o presidente da União de Freguesias, é servir a população usando os recursos e o património disponível.

Na antiga escola primária de São João de Várzea funciona a Unidade de Saúde do Marão. Fotos: Mariana Sá/FT/DR

Por seu lado, Ângelo Magalhães gostaria que os edifícios pudessem também manter algumas das suas funções originais ligadas ao ensino, servindo de acolhimento a programas de formação para os habitantes das freguesias. Nas suas localidades, explica, há pouca gente e programas de qualificação seriam importantes para impulsionar a economia local. A recuperação da escola de Carneiro, cujo projeto passa por criar um albergue que possa ser usado por quem  siga os percursos de trails da zona, é outra forma de dinamizar a região. 


De escola a abrigo

No antigo recreio da escola de Chedas, na freguesia de Gondar, os cães assinalam a chegada de voluntários visitantes com um alegre ladrar. Atualmente, estão neste abrigo da Associação Ajuda Animais 21 cães e três gatos, em fases diferentes da vida. Há ainda mais umas três dezenas de animais em famílias de acolhimento temporário e quatro em hotel. Uns mais sociáveis, outros mais traquinas, o objetivo é conseguir uma nova família para todos. Uma das mensagens da AAA, explica Ana Teixeira, é “não compre, adote”.

O abrigo da AAA acolhe 21 cães na antiga escola de Chedas. Foto: Flor do Tâmega/DR

Desde 2014 que a sócia-fundadora da AAA regressa regularmente àquela que foi a sua escola primária, para agora cuidar dos animais e organizar as campanhas de adoção. Onde, há poucas décadas, Ana Teixeira escrevia as primeiras letras, a voluntária organiza agora o trabalho que exige toda a operação. Mas a dinâmica da associação vai para além do quadro negro da sala de aula e muito trabalho é feito nas redes sociais. Através de um serviço à distância e de mediação, já passou este ano pela associação a adoção de 450 animais. Não há, assim, mãos a medir quando se trata de organizar toda a logística do bem-estar animal.

Em frente ao quadro onde aprendeu a ler e escrever, Ana Teixeira conta a história da AAA e dos animais que já passaram pelo abrigo. Fotos: Flor do Tâmega/DR

E a todo esse trabalho juntam-se as preocupações com o espaço e com as instalações. A cedência do espaço é um presente que vem com muitos desafios, nomeadamente a necessidade de fundos para restaurar e ajustar o edifício às novas funções. Ana Teixeira explica que aguardam obras de requalificação, acordadas com o edil de Amarante, em reunião com o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), para impedir, nomeadamente, infiltrações de água agora que se aproxima o inverno. Outras obras de adaptação, para criar uma sala de tratamento e esterilização e instalar o sistema de prevenção de incêndios, foram financiadas pelo ICNF.

A AAA suporta custos para promover a adoção dos animais, como a vacinação, esterilização, desparasitação e instalação de microchips. Têm uma veterinária voluntária que apoia ocasionalmente no tratamento dos animais, mas, adianta Ana Teixeira, “todos os outros atos médico-veterinários são pagos em clínica privada”. Em 2023, as despesas da Associação ascenderam a cerca de 62 mil euros, dos quais apenas dez mil provêm de um subsídio anual da Câmara. Os restantes fundos são angariados com atividades e eventos.

A escola teve de ser adaptada, para poder acolher os animais. Fotos: Flor do Tâmega/DR

O trabalho de abrigo e da AAA é suportado com a ajuda de um colaborador, colocado pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), e com cerca de 30 voluntários, dez dos quais com tarefas mais regulares. Outros têm uma participação mais esporádica, mas essencial à missão da Associação, ainda que alguns nunca tenham visitado a escola de Chedas. “Temos voluntários que nos contactaram pelas redes sociais, trabalham à distância e nunca sequer os vi pessoalmente”, adianta Ana Teixeira. 

Os próximos passos da Associação passam por desenvolver outras estratégias de consciencialização para o não abandono e para a adoção de animais. Esses novos horizontes inspiram-se na génese das instalações que os acolhem: os voluntários estão a criar projetos sobre o bem-estar animal para integrar nas aulas de cidadania em escolas do concelho. A ligação da Associação ao ensino e aos mais novos será ainda reforçada com uma proposta de atividades in loco, que quer fazer regressar os ocupantes originais do espaço.  O objetivo é assim, conta Ana Teixeira, “organizar visitas ao abrigo e aos animais e trazer, por algumas horas, as crianças de volta a esta escola”.