O riso das crianças foi substituído pelo rumor suave da roda do oleiro. No edifício da escola de Vila Seca, em Gondar, na sala onde antes se sentavam os alunos para aprender as primeiras letras e números, acumulam-se os copos em barro que serão levados em breve a cozer. O ‘forno’ para essa cozedura, na verdade apenas o espaço onde se desenrolará uma técnica ancestral, está instalado no recreio. Aí já não se joga à macaca ou à bola, mas haverá a mesma alegria, música e esforço. No dia da ‘soenga’, nome dado à cozedura que tornará as peças em barro negro, vizinhos e amigos voltarão a dar vida coletiva à pequena escola que fechou em 2014.


Vista exterior da antiga Escola Primária de Vila Seca e espaço para a soenga, no antigo recreio: Foto: Flor do Tâmega/ DR.

O barro negro de Gondar é único no país e mesmo na Europa. A técnica singular de produção artesanal de copos, alguidares, jarras ou até assadores de castanhas resiste nesta aldeia rural de Amarante, mas pode estar em risco. César Teixeira é, atualmente, o último oleiro de uma tradição documentada desde o século XVII. O oleiro não deixa de assinalar a ancestralidade da sua técnica, porque o que faz hoje é mais do que o seu trabalho individual: é uma arte herdada que quer manter viva, apesar das dificuldades que enfrenta no dia-a-dia. A principal tem que ver com o retorno financeiro: “Não é possível sobreviver apenas desta arte”, explica. César Teixeira acumula a técnica do barro com o trabalho num hospital.
A morte desta arte singular está, por enquanto, adiada. César salvou-a do esquecimento, retomando o que aprendeu ainda jovem, quando estava afastado da roda já há alguns anos. Foi em 1988 que César Teixeira aprendeu, do mestre Manuel Teixeira, a técnica da modelagem e da cozedura às quais, ali na terra, chegaram a estar dedicados mais de 80 oleiros. Tinha então 17 anos e foi o primeiro trabalho remunerado que teve. Mas durante dez anos não pôs em prática os conhecimentos adquiridos. Só em 1998 é que foi desafiado, pelo então presidente da junta de freguesia de Gondar, a retomar o ofício e resgatá-lo do destino de esquecimento a que parecia votado. Ofereceu-lhe um espaço para trabalhar, aquele que viria a ser chamado, depois de recuperado, a Casa do Oleiro. Esteve lá durante 12 anos e depois noutra escola, a Escola de Ovelhinha, antes de ocupar a Escola de Vila Seca, onde está desde 2015. “O único apoio que tenho é este espaço para trabalhar”, afirma.

É um espaço que partilha com gosto com o filho João que, desde pequeno, mete as mãos no barro. A continuidade na arte pode estar assegurada por enquanto, mas nem João nem César sabem se terá futuro. Sem apoios institucionais, não há garantia. Tal como o pai, João tem o barro no seu horizonte, planos para gerar valor, mas ainda não tem certezas de que consiga viver apenas da sua paixão pelo barro negro. Licenciado em design, João domina já a técnica, enquanto experimenta “novos materiais e novas formas”. É a garantia, por enquanto, que esta arte não desaparece. Mas falta muito.

António Pereira Dinis, arqueólogo especialista em olaria, conhece bem Gondar e o barro negro. E não entende, garante, como ainda não se procedeu à sua classificação como Património Cultural Imaterial. Foi o que o concelho vizinho de Vila Real fez relativamente ao barro negro de Bisalhães que, ainda que siga um processo semelhante ao de Gondar, é menos antigo e tradicional. Ainda assim, é protegido pela marca da UNESCO. Mas há evidência, explica o arqueólogo, de que a técnica de Gondar se mantém primitiva, quer no que diz respeito à cozedura, quer a nível da roda. “E mesmo as formas, como o alguidar de forno torto, a panela ou o púcaro, são as mesmas”, adianta António Pereira Dinis.

O arqueólogo tem seguido o rastro de documentos para registar a génese, que identificou em oleiros de São Martinho de Mouros que se instalaram em Gondar a origem da técnica. “Mantém-se hoje virgem, tal como se fazia no século XVII”, explica Pereira Dinis, que estuda este tema desde os anos 80 do século passado. Nessa altura, já quase não havia oleiros porque, com a adoção em massa do plástico e do alumínio como matérias-primas para a produção de utensílios, muitos tinham procurado outras profissões. Ao longo dos séculos, conta António Pereira Dinis, também foi assim, sempre que outras hipóteses mais lucrativas apareciam aos artesões. A técnica foi passada de geração em geração no meio familiar, o que levou a não haver grandes evoluções, nomeadamente na forma de cozedura que transforma a argila em barro negro.
Cozer o barro na ‘Soenga’
É no espaço onde antes as crianças faziam o recreio que está a soenga. À vista desarmada, parece apenas um buraco circular largo no solo, mas pouco fundo, onde no meio restam vestígios de uma fogueira. É assim o palco da soenga que ganhará vida quando for o momento de cozer as peças. César Teixeira explica o processo: nesse buraco far-se-á uma fogueira, dispondo as peças à volta até ficarem incandescentes. Depois, com força e rapidez, é preciso que três a quatro pessoas tapem as peças com caruma e com terra. Será o fumo da caruma, a que falta oxigénio para arder em chama, a pintar as peças de negro.








As fases de uma soenga. Fotos: Mariana Sá/DR
No dia da Soenga, há normalmente festa. Como explica João Teixeira, a cozedura da cerâmica está tradicionalmente associada a “uma comemoração coletiva”. Aliás, na aldeia, chegou a haver uma soenga comunitária e ainda existem vídeos de cozeduras acompanhadas de música tocada pelas gentes do lugar. O facto de se juntarem à soenga outras pessoas, que não apenas os oleiros, também resulta do facto de ser uma atividade exigente, em termos de esforço e de força de trabalho. Se as peças não forem tapadas velozmente, podem ficar vermelhas e perdem a cor característica de Gondar.



A soenga é dia de convívio. Fotos: Mariana Sá/DR
A cozedura é o passo final de um processo que começa, às vezes, meses antes. É preciso primeiro partir a pedra para permitir a produção de barro. Juntar-lhe água na quantidade certa, para o tornar maleável, é o passo seguinte, ao qual se segue a modelagem das peças na roda. As peças, originalmente apenas de função utilitária, podem agora ser também elementos de decoração. O filho, João Teixeira, faz muitas vezes peças personalizadas que desenha e cria na roda. Experimenta com óxidos, para ter texturas e cores diferentes. O seu objetivo pode passar por criar uma marca, algo que acrescente valor comercial a uma riqueza ancestral, o que, atualmente, está dificultado.



João Teixeira faz peças personalizadas que desenha e cria na roda. Foto: Flor do Tâmega/DR.João Teixeira faz peças personalizadas que desenha e cria na roda. Foto: Flor do Tâmega/DR.
“A minha paixão é esta arte, mas não dá para viver disto”, lamenta-se o pai. Esta forma de artesanato não tem proteção das autoridades públicas, nem César recebe outro apoio que não seja a cedência do espaço onde trabalha. A participação em feiras e outros eventos resulta, normalmente, de esforço próprio ou ajudas conseguidas a custo. “Levo a minha cidade aos quatros cantos do mundo”, adianta César, mas sozinho. Vende as peças a muitos estrangeiros que procuram a sua arte, mas na própria terra falta valorização. António Pereira Dinis também afirma não perceber porque não há, da parte de restaurantes e cafés de Amarante, uma adoção das peças de barro negro de Gondar, para promover a sua divulgação, mas também para distinguir o que é próprio da terra.
O sonho de João Teixeira é continuar a trabalhar o barro negro e ensinar outros, iniciando-os nesta técnica para que ela continue a ter futuro. Pai e filho assinalam a falta de reconhecimento e proteção a esta arte, de forma a que ela possa ser imagem de marca de Gondar e salvaguardada como património. A Câmara de Amarante, explica César Teixeira, contactou-o pedindo a cedência de peças mais antigas para serem expostas num núcleo museológico a criar no concelho. Também António Pereira Dinis tem um livro sobre “Olarias e Oleiros de Amarante” pronto desde 2018 à espera de publicação, num momento que seria associado ao novo espaço. Mas não há ainda novidades sobre quando e se haverá museu para mostrar ao mundo quão singular é o barro negro de Gondar. A Flor do Tâmega contactou a Câmara sobre este assunto, mas não obteve resposta. Assim, por enquanto, continuam apenas a ser as mãos do oleiro a moldar a memória, salvando o barro negro, um dia de cada vez.