Há um cheiro a vinho novo no ar. Por estes dias, lavam-se os últimos cestos da vindima e as cubas enchem-se de mosto que irá fermentar lentamente até se transformar no vinho verde que Amarante dá ao mundo. É assim também na Quinta do Outeiro, onde Armando Monteiro supervisiona a apanha dos últimos cachos. Há duas décadas, por esta altura, recorda o produtor, estaria apenas a iniciar-se a vindima, que se estenderia até meados de Outubro. Mas, fruto das alterações climáticas, a apanha da uva faz-se agora mais cedo. O tempo mais quente acelera o amadurecimento da uva, antecipando o ciclo de produção do vinho. E, este ano, o calor foi tanto que algumas uvas escaldaram sob o sol abrasador. O resultado, diz António Monteiro, foi uma quebra na produção.
Numa altura em que os fenómenos extremos de calor e de precipitação afetam várias partes do globo, as preocupações sobem de tom no que diz respeito a culturas muito vulneráveis ao clima. É o caso do vinho, um produto importante para o País e também para Amarante. E, ainda que os efeitos das alterações climáticas se façam sentir já no ciclo de produção, na quantidade e qualidade da uva, o cenário no Vinho Verde não é, quando comparado com outras regiões portuguesas de vinho, tão preocupante. Por enquanto, a produção vitivinícola na região vive um bom momento, mas este pode vir a ficar em risco no futuro próximo.
Amarante ao longo do tempo
A região do Vinho Verde tem assistido a uma evolução muito positiva ao longo dos últimos anos. De acordo com dados da Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes (CVRVV), a sub-região de Amarante mais que duplicou a produção na década passada, produzindo à volta de 10 mil hectolitros. Conhecida pelos seus vinhos tintos de alta qualidade, Amarante produz ainda vinhos brancos com aromas frutados e com um teor alcoólico superior à média da região. Estes dados da CVRVV apontam para uma contribuição significativa da sub-região de Amarante para a produção global de vinho verde, representando cerca de 8,5% do total.
Produtor e engarrafador desde 1985, o responsável da Quinta do Outeiro assistiu às muitas transformações por que passou a sub-região. Quando começou, ainda era comum a vinha de bordadura, plantação feita na beira dos caminhos e à volta de outras culturas, como milho e batata. Manuel Pinheiro, ex-presidente da CVRVV e grande conhecedor do Vinho Verde, explica que, a partir do novo milénio, vulgarizou-se a plantação de vinha em contínuo nas encostas, mais longe dos cursos de água e com maior exposição solar. A reconversão da vinha ajudou a aumentar a produção, recorda, assim como também foram importantes os trabalhos em enologia das instituições de ensino superior. Hoje em dia, diz Manuel Pinheiro, «há muitos vinhos verdes que envelhecem bem», o que aumenta o tempo de vida do vinho engarrafado. Armando Monteiro concorda: «Temos já vinhos com quatro, cinco anos, que são ainda de grande qualidade».
Fruto do aumento da produção e também da qualidade, a exportação do vinho verde tem vindo a crescer de forma consistente. «Chega a mais de cem mercados e cresceu para fora da diáspora portuguesa», explica Manuel Pinheiro, para quem este tipo de vinho começa já a ser considerado «uma categoria mundial». O desafio agora é garantir sustentabilidade a este progresso e prevenir potenciais riscos para a produção, principalmente vindos das alterações do clima.
Preocupações para o futuro
André Fonseca, investigador do Centro de Investigação e Tecnologias Agroambientais e Biológicas da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, explica que a diminuição de precipitação esperada para Portugal em virtude das alterações climáticas não terá, nas próximas décadas, um impacto demasiado grande na sub-região. E, até certo ponto, o aumento da temperatura poderá ser benéfico para a uva. Mais calor significa mais açúcar na uva o que, por sua vez, aumenta o teor de álcool. «O período de crescimento encurta», explica o cientista e a necessidade de uma segunda poda deixa, em muitos casos, de existir.
Ainda assim, diz Manuel Pinheiro, o vinho verde criou nome no mundo dos vinhos como sendo um produto menos alcoólico, pelo que o equilíbrio terá que ser assegurado. Por outro lado, calor e sol em excesso poderão queimar as videiras, desidratar a uva e provocar mais stress hídrico. Alexander Cornejo, responsável pelo Departamento de Sustentabilidade da CVRVV, acrescenta: «Tem-se observado irregularidades nos períodos de chuvas, com semanas consecutivas de aridez, o que propicia o desenvolvimento de doenças criptogâmicas», causadas por fungos ou outros parasitas.
Assim, há que prevenir o futuro, alerta André Fonseca. Mais extremos climáticos no futuro poderão afetar o terroir do vinho verde. Em algumas localidades de terrenos mais acidentados, os extremos de precipitação poderão danificar a uva e também causar fenómenos de erosão. Estes, explica o investigador, interferem com a capacidade do solo de reter água. Para combater os efeitos das alterações climáticas, em alguns casos, são já colocadas redes para sombrear as videiras e promovida a colocação de caulino para combater o aumento da temperatura.
Alexander Cornejo acrescenta a necessidade de uma seleção de material genético adaptado às condições climáticas locais e implementação de técnicas de rega sustentável. Esta é, por exemplo, uma necessidade que o produtor Armando Monteiro reconhece. Até agora, as melhores uvas, diz, eram aquelas que se produziam em terrenos onde não havia rega artificial. Mas isso tem vindo a mudar e, por isso, está a pensar em introduzir um sistema de irrigação nas suas quintas. O técnico da CVRVV aponta ainda o exemplo de alguns produtores que já estão a recorrer a tecnologias mais avançadas, como sensores de humidade no solo e sistemas de irrigação inteligentes, para otimizar o uso da água.
A promoção de ecossistemas resilientes, diz Alexander Cornejo, pode também ser conseguida com a diversificação nas vinhas e em toda a propriedade e adoção de cobertura vegetal e preservação de áreas de vegetação nativa, essenciais para o sequestro de carbono. O Estado também poderá desempenhar um papel central, desenvolvendo formas de certificação para práticas sustentáveis e criando benefícios para produtores que as adotem. Deveria ainda, defende o técnico da CVRVV, implementar comparticipações automáticas em casos de sinistros devido a seca ou calor extremo, com base na análise meteorológica local/regional, sem a necessidade de controlo direto.
Vindimas ao calor
Com o termómetro perto dos 30 graus, os trabalhadores ultimam a apanha da uva na Quinta do Outeiro. Do seu trabalho resultará em breve o vinhão, como é conhecido o vinho verde tinto, que o produtor irá vender sob a marca Quinta do Outeiro. As uvas, dizem as mulheres e homens de tesoura na mão, são muito doces, mas o trabalho é difícil naquelas condições térmicas. O produtor também salienta a falta da frescura do outono, que antes acompanhava os trabalhos de preparação da uva. Agora, as cubas têm que ser arrefecidas para permitir uma fermentação lenta e a condensação de água no seu exterior evidencia a diferença térmica entre o ar quente da adega e a temperatura interna a que o mosto tem de ser sujeito.
Não é só na pós-vindima que se sentem as mudanças e algumas começaram há já muitos anos. Armando Monteiro recorda o trabalho de reconversão da vinha que fez já em meados da década de 80, preparando o que iria ser o mote de toda a sub-região uns anos mais tarde. Atualmente com 12 hectares de vinhas e três marcas próprias (Quinta do Outeiro, Coroa do Monte e Flor do Outeiro), escoa a sua produção principalmente em restaurantes e espaços comerciais em aeroportos. Chegou a ter uma distribuidora em França, mas decidiu, entretanto, centrar-se no mercado nacional. «Temos evoluído sobretudo na qualidade», explica.
Esta é uma evolução que gostaria de ver replicada em toda a região. É preciso, defende Armando Monteiro, evitar produtos de menor qualidade e mais baratos, que podem prejudicar a marca da região. Há que manter o preço equilibrado, explica, de forma a compensar o trabalho da produção, e valorizar junto do consumidor a imagem do vinho verde. Apesar de todos os cuidados que teve com a sua produção, e enquanto aguarda pelo resultado final da campanha deste ano, o produtor estima já alguma perda na quantidade. Mas não desiste da luta pela qualidade: «Só assim chegamos mais longe».
Elsa Costa e Silva é professora de Jornalismo na Universidade do Minho