Resgatar a memória da “Águia do Marão” passa por falar de justiça eleitoral

Mesmo passando pela estátua de António Cândido, no Arquinho, todos os dias, muitos não sabem quem foi esse ilustre amarantino que, na viragem do século e da Monarquia para a República, defendia um método eleitoral mais representativo, o voto universal e uma conduta honrada na política. O legado desse orador brilhante está a ser resgatado numa jornada evocativa que vai trazer a Amarante uma exposição biográfica e novos livros. E que já está a ensinar aos jovens quem foi este conterrâneo que, no seu tempo, era uma celebridade.

Estátua de António Cândido no Arquinho, em Amarante.

No Arquinho, o nome tradicional de uma praça central de Amarante, encontra-se sobre um pedestal a estátua de bronze de um homem bem trajado, à moda antiga, que tem o braço direito erguido como se estivesse a todos saudando. Foi em homenagem a esse homem que o Arquinho passou a chamar-se Largo de António Cândido, tendo esse ilustre amarantino, que viveu entre 1850 e 1922, alcançado um grande prestígio nacional no seu tempo. Foi político, professor universitário, magistrado, procurador, par do Reino e conselheiro do rei e do Estado. Os seus dotes oratórios valeram-lhe a alcunha de “boca d´oiro” e ainda outra, de incisiva poesia, atribuída pelo escritor Camilo Castelo Branco: Águia do Marão.

Era de tal forma prestigiado que, quando morreu, foi expressivo o luto – e não só em Amarante, onde o comércio fechou as portas. Foi colocada a bandeira a meia haste na torre da Universidade de Coimbra, houve homenagens de instituições como a Academia Real das Ciências de Lisboa e os três principais jornais portugueses noticiaram a sua morte com destaque de primeira página. Para Isabel, a trabalhar na mercearia a dois passos do homem de bronze, este pedaço de História é uma novidade. “Estou aqui há tantos anos a olhar para ele e não sei”, confessa a amarantina, de 53 anos, convocando colegas e freguesas para responderem à pergunta que a Flor do Tâmega fez a muitas pessoas, numa reportagem realizada naquele local, no sábado seguinte às eleições legislativas portuguesas. “Vocês sabem quem é o António Cândido que está aqui à frente de nós?!”, indaga. Em segundos, várias mulheres se posicionaram a encarar o conselheiro, escavando fundo na memória. “Não tenho ideia nenhuma”, dispara Maria Alcina, carregada com sacos de compras de saída para Lufrei.

“Sei que é de Candemil”, “Ai, agora sei, eu conheço-o tão pouco…” ou “eu só o conheço de estar aqui” foram algumas das respostas que saltaram. É Irene, de 66 anos, nativa de Ansiães, quem quebra o embaraço. Semicerrando os olhos, faz uma expressão compenetrada, que traz água no bico: “Sei que é dos lados do Marão, apanhou muita geada e por isso é que ficou assim todo negro”. A graça desanuvia e Irene diz-nos, agora a sério, que na sua freguesia, escutava os mais velhos falar do conselheiro. E garante que basta visitar o seu idoso pai para ficar a saber mais, porque ele falava de António Cândido: “O meu pai é que lhe contava uma história!”.

Talvez este idoso de Ansiães se recorde da memória coletiva desse luto de lojas fechadas por um homem que, em Amarante, era tido como grande benemérito, devendo-se a ele a construção do Asilo. Mas a consternação nacional que causou a sua morte constituiu, naquela época, um fenómeno de relevo. “Sendo ele um monárquico, em plena República, em 1922, ter este destaque é sinal da força e da importância que ele tinha no país e do reconhecimento que ele tinha. Foi um homem que marcou o seu tempo”, refere Luís Leite Ramos, professor e vice-reitor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e comissário do Programa de Evocação do Centenário da morte do Conselheiro António Cândido. Este conjunto de iniciativas, promovido por várias entidades (entre elas a Assembleia da República, a Universidade de Coimbra, as Câmaras Municipais do Porto e de Amarante e o Centro de Estudos Amarantinos) arrancou em 2021 e ainda se estende pelos meses vindouros. A agenda de conferências, exposições e edição de livros ainda não acabou e há expectativa de publicar, até ao final de 2024, o seu estudo pioneiro de ciência política.

Busto de António Cândido na Assembleia da República, em Lisboa

Existe ainda o plano de levar a Amarante a exposição evocativa que está atualmente, e até 15 de abril, na Assembleia da República – onde se encontra também um busto do conselheiro. É uma mostra para a qual contribuíram várias entidades, no intuito de apresentar os principais momentos da vida de António Cândido Ribeiro da Costa, desde a infância passada em Candemil, o seu percurso académico e político, e a sua participação na vida pública em geral. Tivesse essa exposição passado já por Amarante, seriam diferentes as respostas que colhemos no Largo de António Cândido, naquela movimentada manhã de feira em Amarante?

Nessa manhã cinzenta, muitos clientes da feira esperavam transportes para regressar a casa, e o taxista Rodrigo Barros encontrava-se ao serviço, junto do seu táxi, à direita da estátua do conselheiro. Este marcoense a viver[1]  em Amarante há 30 dos seus 74 anos, voltou-se para melhor encarar a estátua, respondendo sem hesitar: “Foi conselheiro de Estado, nasceu na freguesia de Candemil, teve intervenção na linha férrea do Tâmega e não sei mais sobre ele. Na época dele, foi uma pessoa muito importante para o nosso concelho”, disse. Mesmo assim, Rodrigo não se sentiu satisfeito com os seus conhecimentos e chamou Irene. “Esta senhora está aqui há muitos anos, e ela sabe tudo”, atesta. Mas Irene Oliveira, de 85 anos, saiu da mercearia sem conseguir responder além daquilo que quase todos os interpelados nesta reportagem disseram prontamente: “Ele era de Candemil, sei que foi uma pessoa importante, mas não sei pormenores… mas não falta quem saiba!”, remata, chamando a amiga – “Menucha, anda cá!”.

Menucha é Maria Amélia, de 65 anos, que, estranhando a consulta – “Mas você é mais idosa do que eu!” –, afirma saber que António Cândido era de Candemil. “Eu na escola não aprendi nada sobre ele, sei que ele era o conselheiro”, diz. Prosseguindo a ronda, na porta seguinte, encontramos Artur ao balcão e o mesmo resumo: “Ele era conselheiro e era de Candemil. Já soube melhor a história dele, pelas pessoas mais antigas e da freguesia de Candemil”. No lado esquerdo da estátua, encontramos Joaquim Miranda na esplanada do Café Conselheiro – e será este natural de Aboadela, com 62 anos, o entrevistado que mais conhecimento tinha sobre o homem de bronze. “Foi conselheiro do último rei de Portugal, foi deputado e era capelão”, responde de imediato, justificando-se com uma proximidade familiar. “A minha avó ainda o conheceu, era da família dele. Ainda há uns livros, lá em casa, que eram dele”, assinala. Em mais estabelecimentos e mesas de café, as respostas variam pouco: sobre António Cândido, sabem que era de Candemil, conselheiro e tribuno.


Uma obra que é preciso (re)descobrir

Quem se dedicar a procurar informação sobre António Cândido Ribeiro da Costa, pode ficar a conhecer vários aspetos da sua biografia e até descarregar as suas obras, discursos e livros na internet (consultar a lista de recursos digitais no final da reportagem). É conveniente, porém, pesquisar pelo nome completo, para não criar confusão com o nome do intelectual brasileiro António Cândido de Mello e Souza (1918 – 2917).

Entre essas obras digitalizadas estão compilações de conferências e discursos parlamentares, cópias das originais publicadas entre 1873 e 1954. Há ainda discursos célebres de António Cândido para ler online, como a conferência sobre a Moral Política, proferida no Ateneu Comercial do Porto na noite de 29 de Agosto de 1887. Essa bibliografia foi acrescentada recentemente, com o lançamento do livro “Discursos Intemporais”, no final do ano passado, que reúne os discursos que a “Águia do Marão” fez na cidade do Porto – além daquela conferência no Ateneu, está lá a oração fúnebre nas exéquias de Alexandre Herculano e outros três discursos em honra de Victor Hugo, do Infante D. Henrique e por ocasião do 4º Centenário do Descobrimento do Brasil. Esta obra resultou de um protocolo entre o Centro de Estudos Amarantinos e a Câmara Municipal do Porto.

Edição póstuma de discursos de António Cândido, 1923

Ainda este ano, será lançada uma compilação dos seus estudos de ciência política, da qual falaremos adiante. Foi um admirável percurso para um menino nascido em circunstâncias delicadas, filho do presbítero de Candemil, José Joaquim da Costa Pinheiro, e de mãe solteira, Ana Joaquina Ribeiro. O pai apenas assumiria a paternidade 35 anos depois, em testamento, mas procurou educar o filho com destino à vida religiosa. No seminário de Braga, onde estudou Teologia, cedo se destacou pelas suas capacidades intelectuais e foi um dos alunos mais notáveis, não havendo certezas quanto à sua ordenação como padre – embora tenha mantido, durante toda a vida, uma conduta austera e ligação aos princípios religiosos. Prosseguiu os estudos em Direito na Universidade de Coimbra e aí se manteve como professor. Seguiu também carreira política, entrando nela pelo Partido Histórico, mas alinhando logo depois no Partido Progressista, que representou como deputado ao longo de três legislaturas – que lhe granjearam a fama de orador brilhante e dourado, “Águia do Marão”, mas também o respeito de quem, como ele, se batia pelos valores da honra no exercício dos mandatos políticos.

António Cândido, enquanto lente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1881-1882)

“Ele tinha uma preocupação muito forte com a ética e a moral. Tinha uma visão muito crítica relativamente a comportamentos e a atitudes dos colegas e até dos partidos. Ele dizia que não havia duas vidas, que o político tinha uma única vida e que os seus valores, princípios e comportamentos de todos os dias não podiam ser desligados da vida política. Ele não cedia nem fazia qualquer tipo de compromisso nesse tipo de desvios e isso fez com que saísse do partido Progressista durante uns anos, em colisão com Luciano de Castro [fundador do partido e chefe do Governo entre 1886 e 1890], porque era um homem de grandes convicções”, explica Luís Leite Ramos. António Cândido deixou a vida política depois da implantação da República, em 1910.

Na já referida conferência sobre a Moral Política que proferiu no Porto, o conselheiro exprime sem rodeios a sua revolta em relação à degradação da vida política que, quase 140 anos depois, consegue fazer pontes com um panorama marcado por corrupção, escândalos e suspeitas em relação à integridade dos políticos.  “Distingue-se, e convictamente, entre dignidade pessoal e dignidade política! Pode esta escorrer sangue, ferida pela justiça mais evidente, que isso não impede a outra de se ostentar e impor eficazmente, com o mais exagerado melindre. Como se a honra não fosse indivisível e simples! Como se na consciência moral pudesse haver soluções de continuidade…”, proferiu, então, António Cândido.

Esta é uma  boa deixa para voltar ao Arquinho naquela manhã de sábado cheia de movimento, para ir ao encontro do trio de amigos que conversa alegremente ao ar livre, aproveitando a pausa na chuva. Interrompida nas nuvens, a carga de água vê-se, contudo, no leito do rio Tâmega, que galopa caudaloso ali mesmo ao lado. Entre eles, está José Cunha, de 66 anos, que admite não saber grande coisa sobre o ilustre amarantino, sublinhando ser “de um tempo em que figuras como ele nos eram ocultadas na escola”. Emigrante noutro país europeu durante muitos anos, José inverte os papéis e começa ele a fazer perguntas sobre António Cândido, acabando a proferir algumas frases que, com os devidos adornos de eloquência, poderiam ter saído da boca do conselheiro. “Acho que o sistema democrático é bom, se o sistema funcionar; desde que as pessoas não ponham os seus próprios interesses à frente dos interesses da sociedade”, refere, acrescentando que “o sistema democrático tem solução para tudo, é preciso é querer”.

Remate-se a volta ao largo com outro depoimento, não de viva voz, mas dito por outra intelectual amarantina já desaparecida, e que se pode ler junto a um mural que a evoca. Trata-se de uma frase de Agustina Bessa-Luís, inscrita numa placa: “António Cândido reconheceu na cultura uma arma nobre, e não lhe deu nunca uso que não fosse de verdade e não de aparência”.


O problema dos votos desperdiçados

As propostas deste homem, que se destacou como brilhante orador no parlamento e fora dele, eram vanguardistas na época e continuam atuais. Veja-se o debate que periodicamente reacende – esteve em aberto na anterior legislatura, levantou-se durante a campanha para as legislativas e deu o mote para os primeiros projetos de lei nesta nova legislatura – em torno da ideia do círculo eleitoral compensatório, para evitar o desperdício de milhares de votos. Apesar de o tema ter permanecido marginal, a sua relevância desperta a cada ato eleitoral na constatação de que centenas de milhares de votos não contam para eleger mandatos, em particular aqueles depositados nos pequenos partidos e pelos eleitores dos círculos eleitorais menos populosos. No espaço público, dentro e fora dos meios noticiosos, pudemos ler reportagens, opiniões e estudos sobre este assunto, não tendo faltando quem defenda a aplicação nacional deste mecanismo – instituído em 2006 na Região Autónoma dos Açores (estreando-se nas eleições regionais de 2008) e permitindo eleger mais cinco deputados além daqueles eleitos pelos nove círculos eleitorais do arquipélago.

Nas eleições legislativas de 10 de março, a novidade foi a reviravolta no Parlamento português, já que o desperdício de votos aconteceu, em proporção semelhante à de anteriores escrutínios. Olhando para o círculo eleitoral do Porto, no qual se integra o concelho de Amarante, verifica-se que 5,67% dos votos válidos (61.727 votos) não foram convertidos em mandatos no Parlamento. Com a aplicação do método de Hondt (o modelo matemático utilizado no nosso sistema eleitoral para converter votos em mandatos -, é apenas nos círculos eleitorais com maior densidade populacional – caso de Lisboa e Porto, que elegem, em conjunto, 88 deputados – que os partidos mais pequenos podem almejar eleger. A não conversão de votos em mandatos é muito maior em círculos eleitorais menos populosos, nomeadamente no interior do país, onde chegou a 40% em Portalegre; a 28,53% em Bragança; a 28,03% em Beja; a 23,05% em Castelo Branco; e ainda a 43,32 e a 32,79%, nos círculos da emigração, respetivamente Europa e Fora da Europa. E é também nesses círculos que o voto fora dos partidos que habitualmente se revezam no poder (PS e PSD) costuma ser, na prática, um voto “inútil” – o que faz com que os seus eleitores tenham menos poder para eleger do que os eleitores dos grandes centros urbanos.

Os números aqui citados constam da contabilidade feita pelo projeto O Meu Voto, um portal que disponibiliza uma ferramenta que permite ao eleitor verificar se o seu voto elegeu alguém. Há outra dimensão deste desperdício de votos para a qual esse projeto, criado pelo politólogo Luís Humberto Teixeira e pelo programador Carlos Afonso, pretende chamar a atenção – o facto de serem penalizados sobretudo os partidos mais pequenos. Considerando o mapa oficial do resultado das eleições de março nos 22 círculos eleitorais (18 no continente, correspondentes aos 18 distritos; os dois das Regiões Autónomas; e os dois círculos da emigração),  o projeto O Meu Voto apurou que 12,9% do total de votos válidos – 761.080 votos – não foram convertidos em mandatos.  Os partidos mais prejudicados, a nível nacional, foram o Bloco de Esquerda (BE), o ADN, a CDU, o PAN, o Livre e a Iniciativa Liberal (IL). O BE, por exemplo, não viu 47,77% dos seus 134.878 votos convertidos em mandatos. No caso da CDU, foram 44,31% e, para o Livre, foram 35,99% por cento dos votos. A IL viu desperdiçados 26,98% e, para o PAN, a proporção é de quase 74%. Já os partidos que conseguiram maior representação parlamentar (AD, PS e Chega) tiveram um desperdício de votos residual ou nulo.

Perante estes dados, o projeto sugere uma alteração à Lei Eleitoral, que passe pela redução do número de círculos eleitorais e/ou pela criação de um círculo de compensação eleitoral. “Tem faltado vontade política”, pode ler-se no portal d´O Meu Voto, que dinamizou uma petição pública sobre a matéria. Nos meios noticiosos, outros investigadores concluíram ser até maior a dimensão do desperdício de votos válidos, como é o caso de Hugo Silveira Pereira que, neste artigo no Observador, inclui no cálculo a diferença entre os votos obtidos e os votos necessários para eleger. Assim sendo, terão sido 2,3 milhões os votos que não serviram para eleger deputados no território português (continente e ilhas), afirma o investigador do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia da Universidade de Lisboa, defensor de um círculo eleitoral único nacional. Caso fosse este o método eleitoral em vigor, nestas eleições os partidos com menos mandatos teriam alcançado bastantes mais – a IL teria tido 12 em vez dos quatro que teve; e o BE teria chegado a dez deputados em vez dos 5 que elegeu.

Também sem considerar os votos dos círculos da emigração, o matemático Henrique Oliveira, do Instituto Superior Técnico (IST), calculou terem sido cerca de 1,2 milhões os votos sem representatividade, num estudo divulgado pela Agência Lusa e noticiado em vários meios. Nessa análise, o investigador alerta para a ocorrência da sub-representação dos partidos que, mesmo tendo um número substancial de votos, podem ficar de fora do Parlamento devido à dispersão desses votos pelos círculos eleitorais onde acabam por não contar para eleição, em virtude do método de Hondt.

É antigo o reconhecimento das limitações do sistema eleitoral e, nos últimos anos, foram-se levantando vozes apelando à sua revisão, de forma transversal no espectro ideológico. Nos últimos anos, membros de vários partidos sugeriram reformas que passam pela redução do número de deputados, pelo aumento do número de círculos eleitorais ou pela sua redução a um círculo único, e até pela conjugação de métodos. A revisão do sistema eleitoral encontra-se nos programas de quase todos os partidos, favoráveis, na generalidade, à necessidade de criar maior justiça na representatividade. Porém, o inferno deste debate está nos detalhes, o que pode tornar a criação do consenso longa e trabalhosa.

Um projeto de lei da IL para a criação de um círculo nacional de compensação eleitoral para as eleições legislativas foi chumbado no Parlamento, em dezembro do ano passado, com votos contra do PD, PSD e PCP; e votos a favor do Chega, BE, PAN e Livre. A atribulação política do momento – com a Assembleia da República a trabalhar já na sombra da dissolução – não favoreceu o debate. No arranque desta nova legislatura, porém, a matéria vai voltar ao debate: das 40 iniciativas legislativas apresentadas para debate na primeira sessão parlamentar, quatro dizem respeito à revisão da lei eleitoral. IL, Livre e BE propõe a criação de um círculo nacional de compensação eleitoral para as legislativas; e  PAN propõe a redução do número de círculos eleitorais. 


A qualidade da democracia questionada no século XIX

Entre as ideias levantadas pelos políticos de hoje e pelos analistas, encontram-se algumas que vão ao encontro das reflexões sobre a qualidade da democracia que António Cândido fazia, já nos anos de 1870, em plena monarquia constitucional, quando não existia voto universal e quando coexistiam e variavam os modelos eleitorais. Porém, não se encontram referências a ele, tirando em ensaios ou artigos científicos de alguns (poucos) estudiosos do seu legado ou ainda de estudos ligados a outros movimentos onde ele alinhou, como o movimento Vida Nova e, no rasto da extinção deste, o famoso grupo dos Vencidos da Vida, onde militavam também Oliveira Martins (outro fundador do Vida Nova) e Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, o Marquês de Soveral, o conde de Ficalho, a quem se juntaria, mais tarde, Eça de Queiroz.

“António Cândido ficou sobretudo conhecido e ficou na memória – bem, enquanto houve uma memória – por ser um grande orador. E essa dimensão dele apagou outras dimensões importantíssimas de produção científica e académica e até dos contributos que deu para a vida pública. E a primeira é a de que ele foi um dos fundadores da ciência política moderna em Portugal, e, mesmo na Academia, pouca gente conhece esse facto”, sublinha Luís Leite Ramos. Outras dimensões da vida de António Cândido são talvez ainda menos conhecidas, como a sua visão moderna do Direito, patente no seu trabalho no Ministério Público (foi ajudante de Procurador-Geral da Coroa e Procurador-Geral da Coroa e Fazenda). Para o professor da UTAD, natural de Candemil, trata-se de uma grande lacuna o facto de não existir uma publicação atualizada do estudo de António Cândido “Princípios e Questões de Filosofia Política” (1878), considerado pioneiro da moderna Ciência Política em Portugal. Composto pelos dois ensaios “Condições Científicas do Direito do Sufrágio” (tese de doutoramento) e “Lista Múltipla e Voto Uninominal” (trabalho para provas académicas), aborda questões como o voto universal, os círculos uninominais e plurinominais, o método eleitoral e a justiça na representação das minorias. A publicação destas obras pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, com um estudo de Pedro Tavares de Almeida, deverá ser concretizada ainda este ano.

Os estudos pioneiros de Ciência Política de António Cândido estão disponíveis online

É um passo essencial para a divulgação e reconhecimento do contributo de António Cândido para tópicos que continuam a (pre)ocupar o debate sobre a justiça do sistema eleitoral. Sendo que ele lançou esses temas com uma fundamentação e uma preocupação com a justiça e o progresso da sociedade muito avançadas para a época. “A ideia de que a maioria das pessoas não tinha formação nem capacidade para escolher os seus representantes políticos e que, para poderem votar, tinham de ter o mínimo de instrução era uma ideia muito comum, mesmo nos meios intelectuais portugueses do final do século XIX”, indica Luís Leite Ramos.

Na altura, o voto era reservado aos homens e, mesmo entre eles, aos proprietários e pessoas com um certo grau de estudos, e decorreriam muitos anos até que a literacia deixasse de ser condição para votar – o que excluía a maioria dos eleitores num país com 70% de analfabetos -, o que veio a acontecer apenas a partir de 1913. Falamos, naturalmente, de eleitores do sexo masculino, uma vez que o voto feminino foi admitido apenas em 1931 e com restrições, limitado às mulheres detentoras de formação secundária ou superior. O reconhecimento do sufrágio universal, que António Cândido defendia, apenas foi reconhecido a todos os cidadãos maiores de idade depois da revolução de 25 de abril de 1974.

“António Cândido, na sua tese, defende duas ideias que para mim são essenciais. Ele dizia que, se estivéssemos à espera de as pessoas poderem compreender todos os assuntos do Estado e todas as complexidades dos temas fundamentais, do foro das decisões governamentais e da administração pública, nunca teríamos um voto alargado em Portugal. E a segunda ideia dele tinha a ver com o que era melhor, se os círculos uninominais ou plurinominais, e esse é um debate ainda muito premente, porque há quem discuta que, na verdade, as pessoas elegem partidos e não elegem deputados. Ele defendia que devia haver círculos plurinominais, porque dessa forma as minorias ficariam representadas no Parlamento e a democracia não ficaria centrada em duas ou três forças políticas. E tinha uma ideia genial, que ainda hoje poderia ser usada, de que as pessoas deviam ter dois votos: um voto no partido e outro na pessoa da lista do partido que eles queriam escolher”, resume Luís Ramos.

Desta forma, assinala, os eleitores teriam o poder de participar na criação da lista de candidatos na altura do voto. “Isto é uma forma engenhosa de evitar o que existe atualmente, que é o facto de os eleitores não terem uma palavra a dizer sobre a lista de ordenação dos candidatos e, quando votam num determinado partido, são obrigados a escolher quem o partido colocou naquele lugar”, sublinha o académico da UTAD.

Resgatar “a memória da água pura” entre os jovens

O professor universitário e ex-deputado (esteve quase 13 anos no Parlamento, eleito pelo PSD, até 2022) não resistiu também ao elogio camiliano, nem ao apelo de Agustina Bessa-Luís, tendo citado a escritora na abertura da exposição sobre António Cândido, na Assembleia da República, em dezembro passado. Falando sobre o conjunto de iniciativas da evocação do conselheiro, por ocasião do centenário da sua morte, Luís Leite Ramos disse, então, ter como propósito “resgatar António Cândido do silêncio e do esquecimento a que foi votado e recolocá-lo no lugar a que tem direito na galeria da história e do imaginário nacional”. Para “tirar do poço da memória a água pura que nele vive”, disse, citando Agustina.

Natural de Candemil, o atual vice-reitor da UTAD foi um dos fundadores da Associação Cultural e Desportiva Águia do Marão, coletividade que promoveu, em 1987, a primeira exposição sobre António Cândido em Amarante, assim como sessões com figuras destacadas da cultura, como José Hermano Saraiva, Salvato Trigo e Fernando Amaral. Nos últimos dois anos, no âmbito do projeto de formação de públicos do Centro de Estudos Amarantinos (cujos órgãos sociais integra), Luís Ramos e Pedro Barros Pereira (presidente daquela entidade) apresentaram António Cândido aos alunos e professores das escolas de Amarante.

Gabriel Vilas Boas, presidente do Conselho Geral do Agrupamento de Escolas Teixeira de Pascoaes, recordou à Flor do Tâmega uma palestra que descreveu como “muito útil e surpreendente” – tanto para os alunos do 9º ano como para os professores. “Aprenderam muito sobre a importância dele na sociedade e política em Portugal, naquele momento. Foi uma das palestras que eu mais temia que não fosse interessante, mas acabou por ser muito interessante. O Luís Ramos explicou a tese de doutoramento de António Cândido e aprenderam o que eram os círculos uninominais e plurinominais”, disse o professor.

A história de António Cândido foi também contada duas vezes na Escola Secundária de Amarante, onde o conselheiro tem uma das suas maiores admiradoras. A diretora da Escola, Ana Cristina Santos, descobriu a “Águia do Marão” quando foi trabalhar em Amarante e ficou tão impressionada que não desistiu de o tornar patrono da escola. “Fiquei estupefacta com a dimensão da figura, pela grandiosidade que tem”, refere. Tanto os professores como os alunos daquela escola ficaram a conhecer quem é o homem que tem um busto na Assembleia da República e que, no seu tempo, “era a pessoa mais importante a seguir ao rei”, sublinha a professora.

Se estes alunos das escolas de Amarante estiverem no Arquinho da próxima vez que a Flor do Tâmega lá for perguntar quem foi António Cândido, talvez possam dar uma ajuda a Isabel, Irene, Maria Alcina, Maria Amélia, Rodrigo, Artur e José – isto é, às gerações que, entre a dos seus pais e a dos seus netos, perderam a memória de António Cândido. Talvez estes adolescentes e jovens, quando forem adultos e puderem votar, levem já destes verdes anos uma semente de pensamento que os faça descobrir o ovo de Colombo para as falhas de representatividade do sistema eleitoral português. Ou, pelo menos, serem capazes de acompanhar o debate que se avizinha no Parlamento sobre a revisão da lei eleitoral e nele refletir com maior profundidade.

Recursos online sobre António Cândido

Dossiê digital sobre António Cândido no site do Parlamento, com digitalizações das publicações originais dos trabalhos académicos e discursos, assim como livros publicados sobre ele (compilações de conferências e discursos parlamentares, e não só), entre 1873 e 1954. https://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/antonio-candido-1850-1922.aspx

Pequena biografia de António Cândido, no site do Ministério Público. https://www.ministeriopublico.pt/timeline/antonio-candido-ribeiro-da-costa-1898-1910

Ensaio de Guilherme d’Oliveira Martins sobre António Cândido, no site do Centro Nacional de Cultura. https://www.cnc.pt/antonio-candido-ribeiro-da-costa-1850-1922/

Tese de doutoramento de Elisabete Francisco sobre os Vencidos da Vida, grupo de intelectuais onde se integrava António Cândido -“Eu vi a luz em um país perdido”: o vencidismo para além dos Vencidos da Vida (de 1888 à actualidade)”

Conferência Recitada no Ateneu Comercial do Porto, na noite de 29 de Agosto de 1887 sobre a Moral Política

Website Materiais para a História Eleitoral e Parlamentar Portuguesa, 1820-1926, da autoria de Pedro Tavares de Almeida.