Esta é uma reportagem sobre os invisíveis. Aquelas e aqueles que, nos bastidores, garantem que tudo fica pronto a tempo da festa. Os que planeiam e os que coordenam. Os que montam tendas e bancadas, martelam e vendem um pouco de tudo. Os que depois desmontam e limpam. Há todo um mar de gente que, ano após ano, garante que as Festas do Junho acontecem. Esta reportagem é sobre essa gente.
Durante três dias e três noites, no primeiro fim de semana de junho, o centro de Amarante enche-se de festa. Este ano calhou ser a 31 de maio, 1 e 2 de junho. Mas tudo começa bem antes, porque há muito a garantir para que o programa se cumpra. É preciso compor um cartaz e garantir que se cumpre a tradição, mas que há novidade. É preciso iluminar a cidade e montar estruturas pelas ruas, para acolher vendedores e “comes e bebes”. Há contratos e licenças. E também muito trabalho voluntário. Não é fácil erguer uma festa de três dias, mas assim acontece há muitos anos, desde que temos memória.
Vê-se pelo programa que a Festa decorre em muitos sítios. Mas ser romeiro nos nossos dias passa muito por percorrer a cidade, rua abaixo ou rua acima, de Santa Luzia ao Arquinho, com um desvio até à Alameda Teixeira de Pascoaes ou, na outra margem, até aos “carrinhos”, junto às piscinas municipais. Neste caminho, pode comprar-se cerejas, doces, motoserras, loiça de barro, brinquedos, calçado ou roupa. E as imagens da Nossa Senhora de Fátima convivem lado a lado com as de Buda.
Nas Festas do Junho, as ruas de Amarante enchem-se. Foto: FT/DR
O passeio é melhor de manhã, porque de tarde o calor aperta. Em Santa Luzia, de um lado da estrada há farturas e do outro doçaria de romaria: os doces fálicos de S. Gonçalo – em honra de quem se faz a Festa – rosquilhos e Biscoito da Teixeira. Na Alameda, o cheiro a farturas mistura-se com grelhados. Aqui, as barraquinhas das associações e clubes sem fins lucrativos – instaladas pela Câmara – são uma forma de angariar dinheiro e proporcionam comida e bebida a quem anda a aproveitar a Festa.
À medida que o passeio avança, a música também muda: os Gipsy Kings misturam-se com o Quim Barreiros, que, já sabemos, “tira o carro e põe o carro à hora que ele quiser”. A música pop dos “carrinhos” mistura-se com o ritmo dos bombos, com os cantares das rusgas e com os sons das bandas musicais. E quando não há música, ouve-se o burburinho das conversas e dos negócios. É uma Festa de rua e é de todos.
Mas tudo isto é possível, porque há rostos invisíveis que soltam pregões, dizem preços e dão trocos. Que tiram finos e estendem bifanas. Que recolhem fichas e dizem que “menina bonita não paga, mas também não anda”.
Os bastidores onde se ergue a Festa
Numa celebração como esta, que mistura sagrado e profano, a procissão em honra de S. Gonçalo é um ponto alto. Começa ao fim da tarde de domingo, às 18h, mais pela fresca. Por isso, às 17h há azáfama no claustro da Igreja de S. Gonçalo, onde é preparada. Isilda Fernandes é de Lousada, tem 60 anos e é camareira da procissão há cerca de 30. Começou por vir com o sogro e agora dá conta do negócio familiar. Diz que há falta de camareiros por todo o país, por isso não lhe falta ocupação.
Preparar a procissão começa antes do domingo de Junho. Explica que, previamente, tem de fazer algumas perguntas, para saber como”compor os quadros”, as diferentes secções de uma procissão, que são encenações de cenas bíblicas. Já está muito habituada, mas há que antecipar: “há sempre imprevistos, mas resolvem-se bem”, garante. “Para prevenir, trago sempre tamanhos diferentes”, acrescenta, enquanto mostra o bengaleiro carregado de trajes.
Numa fila de caixas encostada ao murete do claustro estão os acessórios que vão ser distribuídos pelos figurantes, que se vão vestindo, para no fim Isilda poder dar-lhes um retoque final. Mas o trabalho só termina no fim da procissão, que acompanha do início ao fim: “pode descoser-se alguma coisa ou cair algum acessório e tenho de estar lá para resolver”.
Em muitas coisas, esta é uma procissão igual a tantas outras, mas Isilda aponta-lhe algo típico: há mulheres a vestirem-se de S.Gonçalo.
Subindo uma escadaria chegamos à Varanda dos Reis, onde um grupo de voluntárias prepara os raminhos de cravos que, no final da procissão, vão ser dali atirados à população pelo pároco de S. Gonçalo. Estes cravos vieram das freguesias do concelho, para a eucaristia das 11h em S. Gonçalo, e juntam-se-lhes os cravos oferecidos para pagar promessas ao Santo. Esta é uma das tradições que se têm mantido ao longo do tempo, num cartaz que se foi adaptando.
No grupo de voluntárias que se organiza anualmente para esta tarefa, encontramos quem se tenha juntado agora e quem já faça isto há décadas. Maria Clara Pacheco – a “enfermeira Clara”, como é conhecida – é considerada “veterana” destas andanças: “Faço isto há 30 anos com muito carinho e não imagino deixar de o fazer”. Margarida Brás Silva juntou-se ao grupo há quatro anos, porque considera que “é muito importante mantermos as tradições”.
Enquanto conversamos com o grupo de mulheres, ouve-se o som de bombos que vem do Largo de S. Gonçalo: é o Grupo de Bombos de Santa Maria de Jazente, a entreter os romeiros que já se vão juntando ali à porta da Igreja, antecipando a saída da procissão que já não demora.
Maria de Fátima Ribeiro tem 60 anos e faz parte deste Grupo, fundado em 1949. Começou por acompanhar o pai, apenas com 7 anos. “Tocava um bombo pequeno”, recorda. “Agora, uso o chapéu do meu pai, como homenagem”, acrescenta, com um brilho nos olhos. Percorre todo o país com o Grupo e já foi ao Brasil, mas diz que aqui nas Festas do Junho também “encontra gente de todo o lado” e são uma ocasião especial: “É a Festa da nossa cidade!”.
O grupo de Bombos de Santa Maria de Jazente é assíduo nas celebrações públicas do concelho: “Participamos sempre na Festa em honra de S. Gonçalo, em janeiro, no Corpo de Deus e nas Festas do Junho”, conta. Mas o Despique de Bombos é o momento preferido de Maria de Fátima.
Mais recentemente, em 2009, ajudou a fundar as As Rosas de Santa Maria de Jazente, um grupo só de mulheres. E parecer não ter planos para deixar de rufar. “Enquanto Deus me der vida e saúde, vou preservar esta paixão que herdei do meu pai”, garante.
Quem passou pelo Largo de S. Gonçalo ao fim da tarde de domingo certamente não se recorda de ver Maria de Fátima, anónima entre todos os elementos do Grupo. Também não viu o grupo de voluntárias que trabalhava acima, na Varanda dos Reis. Isilda provavelmente passou despercebida na procissão. Mas todas, ainda que invisíveis, tiveram um papel essencial na Festa que todos viram.
O dia seguinte não é igual para todos
Na segunda-feira, os amarantinos regressam à normalidade da vida quotidiana, ao trabalho ou à escola. Há turistas a passear, mas quem percorra as ruas principais do centro da cidade ao final da manhã não imagina como estiveram cheias nos dias anteriores. Tudo desapareceu como que por magia, ainda durante a noite e às primeiras horas da manhã. Pela madrugada dentro, foi-se desmontando as tendas que ocupavam os passeios das ruas, carregou-se as carrinhas e rumou-se a outras paragens, ao encontro de outras festas. Durante a manhã vão desaparecendo outros vestígios dos dias de folia.
Ali junto à antiga Estação, resistem as farturas Pinto, mas ainda de porta fechada. Certamente vão aproveitar mais uns dias de negócio. Com o tempo quente e propício a uns passeios de família pela fresca da noite, talvez seja possível fazer render um pouco mais a deslocação até Amarante. No largo de Santa Luzia, já não há farturas nem Biscoito da Teixeira e, pela rua abaixo, o Junho já só sobrevive na iluminação – que ainda fica por mais uns dias – e nas fitas que decoram as árvores e a fachada das lojas.
As ruas de Amarante, na segunda-feira a seguir às Festas. Fotos: FT/DR
À chegada à rua 5 de Outubro, cheira a lixívia e detergente. Os lojistas lavam a rua e as montras e preparam-se para acolher os clientes. Já no largo de S. Gonçalo, as bicas de cerveja e os balcões por desmontar recordam a animação dos últimos dias. Mas é na Alameda Teixeira de Pascoaes que o trabalho de limpeza e desmontagem ainda dura. Há que fazer desaparecer todas as estruturas de metal e madeira que albergaram os comes e bebes. Ainda tentámos ouvir os depoimentos de quem lá trabalhava, mas não foi possível: estavam em horário de trabalho e não havia tempo a perder, porque era preciso desimpedir o Largo.
Na Alameda Teixeira de Pascoaes trabalham equipas de limpeza e de desmontagem. Fotos: Mariana Sá/DR.
Do outro lado da Ponte, virando à direita na direção do Parque Florestal, há muito a desmontar. No largo, junto ao Cineteatro, resistem algumas roulottes de farturas, fechadas e em silêncio. A descansar de noites que foram longas. Abaixo, no recinto dos “carrinhos”, o chilrear dos pássaros e o murmúrio do Tâmega são interrompidos por sons de metal, martelos e as vozes de quem trabalha. Mulheres e homens limpam, lavam e desfazem os “gigantes” de ferro e madeira que ajudaram à diversão. Também não têm grande tempo para conversas, mas vão deixando escapar que “não é trabalho fácil”. Se às 10h30 o calor já aperta – e muito mais para quem está ali a trabalhar ao sol -, dá para imaginar como será dali a algumas horas.
São quatro a cinco horas para montar uma estrutura pequena ou média e outras tantas para a desmontar, explica Alexandre Fernandes, sem parar de trabalhar. Algumas diversões ficarão mais uns dias, mas muitas seguem já na segunda-feira para a próxima paragem. “Agora seguimos para Famalicão”, adianta. E assim percorrem – durante todo o ano – o país em festa, sempre em itinerância.