O 25 de Abril foi feito para todos, mas a Revolução foi diferente para cada um

O rosto de António ilumina-se ao ver a foto com que Eduardo Teixeira Pinto imortalizou Abril de 1974. Recorda-lhe  outros tempos: “São operários da TABOPAN. E sindicalistas… Das caras lembro-me. Mas dos nomes… Depois destes anos todos, já não consigo… Mas este aqui acho que é o Trindade!”. Explica que talvez o encontremos num café no Largo de Santa Luzia, onde um grupo de aposentados da empresa costuma juntar-se.

Esta é a foto de uma Rua 5 de Outubro em festa, num dos dias a seguir à Revolução. Pode até ser do dia 25 de Abril. Nos cartazes lê-se que “O Povo Unido Jamais Será Vencido”, apela-se ao “Fim dos Monopólios”, ao “Fim da Carestia” e a que “Lutemos por um Portugal Melhor”. Os rostos são de homens – que isto das revoluções não se faz de um dia para o outro -, entre mais velhos e mais novos. Alguns serão rostos ainda incrédulos, muitos de entusiasmo, outros até de quem ainda está a tentar perceber aquela nova vida. Por certo, rostos de esperança.


“Nós também queremos ir”

Para Zé Guedes, o dia 25 de Abril de 1974 começou às 7h, como qualquer outro, em Mafra, onde cumpria o serviço militar como cadete de segundo ciclo. Mas algo se passava: “Recebemos ordens para não sair da caserna”, explica. Espreitaram pela janela e perceberam que havia movimentações militares e gente na rua. Só não sabiam se era um golpe da esquerda ou da direita – eram tempos de incerteza. As notícias foram chegando e as dúvidas dissiparam-se: “Soubemos que era um movimento revolucionário que ia derrubar o regime”. Conta que os cerca de 200 instruendos organizaram-se numa delegação e foram ter com o oficial de dia. “Nós também queremos ir!”, insistiram. 

E assim foi: “Tivemos ordens para ir receber balas reais”. Ao final da tarde partiram para Lisboa, para render os camaradas que tinham avançado de madrugada. Montaram guarda ao Quartel-General da Região Militar de Lisboa, em S. Sebastião da Pedreira, a partir da varanda da casa de um oficial implicado no golpe. “Fomos muito bem recebidos, com arroz malandrinho”, recorda com um sorriso. De manhã, seguiram para outra missão, no Comando-Geral da Legião Portuguesa, que já estava vazio e só “deu para guardar uma munição de recordação”. As pessoas na rua saudavam-nos: “Percebemos que alguma coisa extraordinária estava a acontecer!”. Depois foi regressar a Mafra, para terminar a instrução. Mas a vida no quartel já não seria a mesma.

Zé Guedes, enquanto recorda o dia 25 de abril e os tempos que se seguiram. Mariana Sá/DR.

Para António da Silveira tudo começou no dia anterior. Com 31 anos, era motorista na TABOPAN. No dia 24 de abril regressava com um colega, em trabalho, a Amarante, vindo de Lisboa, onde ainda jantara. Pouco depois da meia noite, já em Leiria, a rádio  – que lhes fazia companhia na viagem – pô-los em alerta. “Deu a canção que nós não ouvíamos…”, recorda. Era a Rádio Renascença a passar a Grândola, Vila Morena, de Zeca Afonso, o sinal que confirma o golpe e desencadeia as operações. Antes, às 22h55, os Emissores Associados de Lisboa tinham transmitido o tema E Depois do Adeus, de Paulo de Carvalho, a senha que dá início à primeira fase do golpe e que ninguém estranharia ouvir – era uma música muito conhecida, que tinha vencido o Festival RTP da Canção.

“E depois o rádio não deu mais nada”. À chegada a Vila Nova de Gaia o cenário era outro: “Pela avenida abaixo já havia chaimites, militares e percebemos que alguma coisa se passava”. E continuaram até Amarante. “No outro dia de manhã estava tudo em revolução na fábrica”, recorda. E daí em diante a vida foi diferente para os trabalhadores da TABOPAN.

As histórias de Abril não são iguais. As do dia e as dos dias que se seguiram. Para alguns são memórias de frenesim, de alívio, de júbilo e de festa. Para outros, mais longe do epicentro da Revolução ou com menos envolvimento político, Abril aconteceu mais lento. Ao ponto de, do dia, até nem haver grandes memórias. Para Marília Guedes e Emília Dias não foi um dia diferente dos outros.

Mesmo morando na Rampa Alta, ali bem perto da TAPOBAN, onde os operários se manifestaram, Marília Guedes soube da Revolução pela televisão. Com 25 anos, e professora primária desde os 19, foi para a escola, em Sanche, como habitualmente. Nos tempos que se seguiram continuou a ensinar como dantes: “Mandaram-me queimar livros, mas eu não queimei livros nenhuns. Porque livros não se queimam!”. Na vida pessoal, diz que não sentiu mudanças. A não ser um ano depois, quando foi votar.

Emília Dias, com 14 anos, no dia 25 de Abril de 1974 estava a “servir” – como interna – em Cepelos, na casa de um bancário e de uma professora, onde tomava conta de um par de gémeos. “Nessa altura não via televisão, nem ouvia rádio”, explica. Só percebeu que alguma coisa tinha acontecido mais tarde, pela conversa dos patrões. E parecia ser algo positivo: “Eles falavam de uma mudança. Que íamos ter liberdade e que isso ia ser uma coisa boa”, recorda. Mas naquele dia a Revolução passou-lhe ao lado.


As conquistas de abril e o “fim da festa”

“É indescritível o que se passou no dia 25 de Abril e até ao 25 de Novembro”. São palavras de Zé Guedes, para quem havia “liberdade total”. “Mas não era liberdade anárquica”, sublinha. “As pessoas queriam panfletos, iam buscá-los. Eram edições sucessivas de jornais. Queriam saber, participavam, discutiam acaloradamente”, continua. 

E a mudança também se viveu nos quartéis. “Os vencedores do golpe limparam as unidades e a disciplina alterou-se. Discutia-se tudo e tanto um oficial como um soldado compreendiam as missões que tinham de cumprir e aceitavam ou não”, esclarece. Conta que participou voluntariamente em algumas missões “mais delicadas” a seguir ao 11 de Março, enquanto vai folheando um álbum de fotografias e lembra o percurso militar e os camaradas. 

Mas o 25 de Abril de Zé Guedes começou muito antes. Nesse dia já não vivia em Amarante há seis anos. Estudou no Colégio de S. Gonçalo que, desabafa, “naquele tempo cheirava a mofo”. Explica que, a partir de 1972, já enquanto estudante da Faculdade de Economia do Porto, tornou-se militante de uma organização revolucionária e fez trabalho político clandestino em Amarante, com operários da TABOPAN e da Taga. Esses contactos eram feitos com muita cautela: “Eu nunca lhes disse que era membro daquela organização. Assim, se fossem presos, nunca poderiam identificar-me”. Recebeu formação intensiva sobre como comportar-se com a polícia, mas admite:”Se fosse apanhado, não sei se não fraquejava. Nunca ninguém sabe”. 

Quando sai da tropa, a 12 de dezembro de 1975, vai para o Porto, onde continua a militância política já noutra organização. Visita Amarante apenas esporadicamente, para ver a família e continuar a trabalhar com operários e sindicalistas de fábricas como a Alberto Marinho. Um destes contactos é Fernando Paiva, de Celorico de Basto, tipógrafo do jornal Flor do Tâmega.

Panfleto distribuído por Zé Guedes, no pós-25 de abril.

É preso em 1978, pela atividade política, e passa  três anos e meio em Custóias. Quando sai, percebe que muita coisa tinha mudado: “Tinham ficado muitas conquistas de Abril – a liberdade é a fundamental – mas a festa tinha terminado. As pessoas estavam acomodadas. Aburguesaram-se. E depois eu também me aburguesei!”, remata com uma gargalhada. Lembra-se de encontrar uma Amarante mais aberta e liberal, que passou a visitar mais vezes. Depois de alguns trabalhos esporádicos e incertos, que lhe foram garantindo a subsistência, passou por uma cooperativa – gerida por antigo colega da faculdade – até chegar ao emprego que viria a ter por 30 anos, como representante da editora Relógio d’Água no Porto. 

“Era outra coisa. Podia-se falar com o patrão. Até aí era com o encarregado e ele é que falava com o patrão”. É assim que António da Silveira recorda o que lhe trouxe o 25 de Abril. Mas lembra-se de um tempo de mudanças lentas: “Derrubou-se o Governo, mas cá fora continuou muita gente que tinha poder”. Na altura, António já morava em Fregim e começou a construir a casa onde ainda hoje vive e onde recebeu a Flor do Tâmega. “Uma coisa que mudou foi fazer a minha casa. Naquela altura, quem quisesse fazer uma casa tinha de ir para o estrangeiro, porque o banco não emprestava”, explica. Isto só foi possível com o aumento dos salários. 

Um ano depois do 25 de Abril, nas eleições para a Assembleia Constituinte – em que o PS, liderado por Mário Soares, foi o partido mais votado – Marília Guedes foi votar: “Nessa altura, ai Jesus, toda a gente quis votar!”, garante. Não está enganada: registou-se uma participação de 92% dos eleitores, a mais alta de sempre. Com a Lei n.º 621/74 de 15 de Novembro, o direito de voto tornou-se universal em Portugal e muitos exerceram-no pela primeira vez. Muitas dessas pessoas eram mulheres. No dia 23 de abril de 1975, sexta-feira, às 20h, Marília Guedes tinha dado à luz uma menina no Hospital de S. Gonçalo, em Amarante. No domingo ainda estava internada. A mesa de voto era ali ao lado, na escola: “Quando saí  para votar, vi  tanta gente! Quando me viram, de roupão, a querer ir votar, deixaram-me todos passar à frente!”, recorda com um sorriso. 

Para Emília Dias, durante muito tempo não houve grandes mudanças. Pelo menos, não deu conta disso. Nem sequer votou, como Marília, porque ainda era menor. Continuou a “servir” na mesma casa até aos 26 anos, de onde saiu para casar. Voltou a Gondar, onde vive até hoje. Depois de muitos anos a trabalhar como operária numa fábrica de utensílios de cozinha, recentemente aposentou-se. 

Um militar, ativista político e livreiro; uma professora e dinamizadora comunitária; um motorista de pesados; e uma empregada doméstica e operária. Cada um viveu o 25 de Abril à sua maneira. Mas Zé Guedes não hesita: “Aconteceu aquilo que eu desejava. Aquilo que a maioria desejava. Sentimos um alívio tremendo”.

Moram todos em Amarante e estão os quatro aposentados. Zé Guedes mantém interesse na vida pública e na política e continua insatisfeito. António ainda mora na casa que a Revolução o ajudou a erguer, onde, com a mulher, criou os filhos e continua a receber a família. Marília vive rodeada de natureza, continua a ter voz (a que já tinha e a que lhe deu a Revolução) e a envolver-se na vida comunitária. Emília – ou Mila, como é conhecida – ajuda a criar as netas e, nelas e nos filhos, vê realizar-se o Abril que a ela só chegou mais tarde. E o Trindade da foto de Eduardo Teixeira Pinto há de estar pela esplanada, em Santa Luzia. Quem sabe, por estes dias, terá recordado à mesa do café episódios daqueles tempos de há 50 anos.

Sobre a foto que ilustra a reportagem: Rua 5 de outubro, em Amarante. Foto alusiva ao 25 de abril de 1974. Autoria: Eduardo Teixeira Pinto (Associação para a Criação do Museu Eduardo Teixeira Pinto/DR)