As pontes de S. Gonçalo de Amarante

Se é santo ou beato, de janeiro ou de junho; se é “casamenteiro das velhas” ou de todos os que dele precisam, tudo isto parece ser irrelevante. O culto a S. Gonçalo está estabelecido entre as gentes de Amarante e não só: estende-se a outras paragens de Portugal e do Mundo, em particular do Brasil. São diversas as expressões dessa devoção, que ultrapassa a fé e assume uma dimensão cultural que une em celebração crentes e não crentes. A ponte que S. Gonçalo em tempos reconstruiu em Amarante desdobra-se hoje em muitas pontes imateriais.

S. Gonçalo é nome de rua em Guimarães, Braga, Ponta Delgada e Vila Nova de Gaia. Em Amarante já não é, mas foi: da que hoje se chama 5 de outubro. Já a Praça da República é como se nem existisse: marca-se encontro no Largo de S. Gonçalo. É freguesia de Amarante, mas também do Funchal. Em Amarante, é marca de fumeiro, nome de farmácia, de um café, de um doce regional, de um colégio e de uma pousada. Já deu nome a um hospital e, claro, batiza a ponte do século XVIII, também conhecida por Ponte Velha, para se distinguir da outra, a Nova. E partilha o nome com outro Santo português: o S. Gonçalo de Lagos.

A presença de S. Gonçalo estende-se a outras regiões do país, maioritariamente no Norte. A 10 de janeiro (data da morte), ou no primeiro domingo a seguir, é celebrado em Amarante, mas também em Mafamude (Vila Nova de Gaia), em Vizela (onde nasceu) e em Aveiro, aqui como S. Gonçalinho. No penúltimo domingo de janeiro, comemora-se em Covelas (Trofa). Em Covelo (Gondomar) a festa faz-se em junho, tal como em Amarante. Em Tagilde (Vizela), dá-se tremoços e um cálice de aguardente, porque em janeiro é frio e é preciso aquecer;  em Aveiro atira-se cavacas da torre, enquanto toca o sino; e em Amarante dá-se figos em janeiro e cravos em junho.

Fora de Portugal, no Brasil, podemos visitar S. Gonçalo do Amarante no Ceará e em Natal (Rio Grande do Norte); o município de S. Gonçalo, no Rio de Janeiro;  outras derivações em Minas Gerais, Pernambuco, Maranhão, Mato Grosso e até o parque solar São Gonçalo, no Estado do Piauí. Dá ainda nome a um jornal, um dos mais antigos do Rio de Janeiro, e a clubes de futebol. O culto espalhou-se também pelo noroeste peninsular, tanto em Portugal como na Galiza, por via dos caminhos de Santiago. 

O pároco de S. Gonçalo, em Amarante, José Manuel Ferreira, explica esta difusão com a mobilidade:  “S. Gonçalo chegou onde chegaram as pessoas da região norte do país. Levaram a língua, a cultura, a gastronomia e também as devoções”. Mas também se explica pelos caminhos do Santo. Nasce em Tagilde (Vizela), acredita-se que, em 1192. É pároco em S. Paio e, durante 14 anos, é peregrino, o que o terá levado até à Palestina. Quando regressa, fixa-se nas margens do Tâmega, no local que viria a ser Amarante, de onde partia para pregar pelas terras vizinhas. Entra na Ordem dos Dominicanos, no convento de Guimarães e, terminado o noviciado, regressa a Amarante, onde morreu e foi sepultado, a 10 de janeiro de 1262.

Beato Gonçalo de Amarante. Estampa Religiosa. Obra no Domínio Público.
Beato Gonçalo de Amarante. Estampa Religiosa. Obra no Domínio Público.

“É um beato santificado pelo povo”

A canonização é um assunto ainda em cima da mesa. O último processo foi submetido na mesma altura do de Santo António, no século XVI, e não avançou. Mas foi beatificado em 1561. Há uma cópia da bula da beatificação na Sala do Antecoro da Igreja de S. Gonçalo, enviada pela Congregação da Causa dos Santos. José Manuel Ferreira, que iniciou funções na paróquia em 2008 e, tal como S.Gonçalo, é natural de Vizela, não entende que esse seja um assunto relevante:  “A realidade superou a institucionalização. Institucionalmente, Gonçalo de Amarante é beato. Mas as pessoas canonizaram-no, pelas suas virtudes, pelas suas qualidades humanas, pela vida que levou aqui em Amarante, pela projeção que ganhou ao longo dos tempos”. E acrescenta: “Vendo bem, a própria paróquia – S. Gonçalo – tem “Santo” no nome. Estamos num patamar intermédio”. Mas não está posta de parte a possibilidade da canonização, lembra: “Há processos para casos em que há um culto muito antigo como este, que vem desde o século XIII, imediatamente após a sua morte, e ininterrupto”.

José Manuel Ferreira, pároco de S. Gonçalo, Amarante. Amarante Magazine (DR)

Se é Santo ou Beato é coisa que parece ter pouco ou nenhum peso na devoção que suscita. Para António Patrício, de 72 anos e natural de Amarante, autor da obra “Lendas de S. Gonçalo e de Amarante”, “é um beato santificado pelo povo”. E explica a dedicação que o move: “Como amarantino e devoto, sinto o dever de o apresentar como um homem igual a nós. A devoção não se explica, mas, quando falamos com ele, parece que ouve, que nos dá um sinal”. “Vejo alguém com os valores e a forma de vida de um homem bom, completamente dedicado à evangelização e às causas sociais. Mas também um santo brincalhão, tratante”, acrescenta com um sorriso.

António Patrício. Foto cedida por António Patrício (DR)

Esta ideia de um Santo bem disposto e próximo das pessoas é comum às diversas formas que assume o culto: a celebração litúrgica e a romaria andam de mãos dadas e em ambas há lugar para a fé e para a festa. Para José Manuel Ferreira, esta é uma relação natural:  “O S. Gonçalo é tanto do povo como é da Igreja. As expressões festivas são circunstanciais, porque as pessoas fazem a festa de acordo com os valores vigentes à época. Por exemplo, temos os bombos associados à celebração de S. Gonçalo, porque essa é uma tradição que existe na zona do Minho – é preciso lembrar que a diocese de Braga vinha até esta zona.” 

O quotidiano das pessoas acaba também por ditar as atividades da romaria. A feira do gado, que se realizou durante muitos anos, permitia que os romeiros, muitos vindos de longe, num tempo em que as deslocações eram custosas, pudessem, no mesmo dia, tratar de negócios e alimentar a fé. A programação mudou e, nos nossos dias, mantêm-se algumas tradições, como os bombos, os ranchos folclóricos ou a procissão, e acrescentaram-se outras atividades, como o fogo de artifício, que vão ao encontro de gostos mais diversos e contemporâneos e podem também atrair turistas.

Imagens das celebrações de S. Gonçalo, em Amarante. Amarante Magazine (DR)

Em Amarante, S. Gonçalo é celebrado em janeiro e em junho, o que pode levantar dúvidas sobre qual é a celebração “oficial”. O pároco de S. Gonçalo desvaloriza a questão: “Julgo que é uma discussão estéril. O 10 de janeiro, sendo o dia da morte do Beato Gonçalo, estabeleceu-se como a celebração litúrgica. Como na Europa esta data é no inverno, não é propícia a romarias. Na nossa região sempre houve muitas romarias ao fim-de-semana, porque a semana era de trabalho. Aqui em Amarante, calhou ser no primeiro fim-de-semana de junho, data que se mantém até hoje. Já no Brasil, o 10 de janeiro calha no Verão”. 

São muitas as lendas que se vão reproduzindo em torno de S. Gonçalo e que, por vezes, podem até obscurecer factos relevantes. Mas a reconstrução da ponte parece ter-se afirmado como central, tanto do ponto de vista físico como metafórico. É essa a convicção de José Manuel Ferreira: “A dimensão das lendas acaba por ser muito redutora. Mas há um dado incontornável que é a ponte”. E continua, enquanto reafirma o valor material e imaterial da ponte de S. Gonçalo: “Quando temos duas margens desconectadas e criamos uma ligação, criamos comunicação: de palavras, de conhecimento, de bens e de pessoas. Hoje, é fundamental manter e ativar esta comunicação. É preciso recuperar o que S. Gonçalo reconstruiu. É preciso reconstruir pontes entre pessoas, entre territórios. Entre povos e culturas distintas das nossas, que reconhecem em S. Gonçalo características diversas. E essas pontes podem até atravessar oceanos e os tempos. S. Gonçalo é, nesse sentido, um pontífice; reconstruiu uma ligação física, mas também humana e espiritual.”

A casa de S. Gonçalo, em Amarante

Apesar das muitas pontes que vão sendo criadas, S. Gonçalo tem uma casa em Amarante. Uma casa imaterial, por certo, mas também uma material: a Igreja de S. Gonçalo. Não foi só em Amarante que lhe dedicaram igrejas, capelas e ermidas. Existem em Tagilde, Aveiro, Trofa, Albergaria-a-Velha, Ponta Delgada, Terceira, Ponte de Lima ou em Valongo. E em vários pontos do Brasil. 

Construída sobre a ermida que terá sido edificada por S. Gonçalo, a primeira pedra da Igreja (posteriormente doada a um Convento dominicano) terá sido lançada em 1543. A construção estendeu-se entre os séculos XVI e XX. Com a extinção das Ordens Religiosas, em 1834, e a secularização do Convento e de todos os seus bens, este passa para a ser gerido pela Câmara Municipal, que arrenda alguns espaços, transfere para o Convento as sessões camarárias, constrói uma cadeia e estabelece uma “roda dos expostos”. O espaço albergou uma feira nos claustros, o Tribunal e o Ministério Público, o posto telegráfico, lojas e talhos, um quartel, os Paços do Concelho e um teatro. Já no século XX, acolheu um liceu, uma escola primária e um cinema. Já depois dos estragos causados por um incêndio e por um ciclone, recebe a Biblioteca-Museu, em 1947, e, na década de 80, realizam-se obras para receber o Museu  Municipal Amadeo de Souza. O espaço da Igreja tem sido também uma casa para a música. Foi palco habitual da Orquestra do Norte e, de forma mais esporádica, de iniciativas como o MIMO Festival.

Orquestra Chinesa Cheong Hong de Macau. MIMO Festival Amarante. Amarante Magazine (DR)

A Igreja e o claustro do Convento, os espaços que são atualmente geridos pela Paróquia de S. Gonçalo, estão classificados como Monumento Nacional desde 1910 e foram recentemente reabilitados, com o apoio do Programa Operacional Norte 2020, da Direção Geral do Tesouro e Finanças, proprietária do edifício, do Município de Amarante, da Direção Regional de Cultura do Norte e de privados, como a Fundação Manuel António da Mota e membros da comunidade amarantina. Os espaços reabriram ao público em janeiro de 2022, depois de 16 meses de obras. 

Vista da Igreja de S. Gonçalo, a partir do coro, antes das obras de reabilitação. Amarante Magazine (DR)
Pormenor do interior da Igreja de S. Gonçalo, depois das obras de reabilitação. Paróquia de S. Gonçalo (DR)
Vista da Igreja de S. Gonçalo, a partir do coro, antes das obras de reabilitação. Paróquia de S. Gonçalo (DR)
Imagem de S. Gonçalo, no interior da Igreja de S. Gonçalo. Paróquia de S. Gonçalo (DR)

“As pessoas vêm cá por diferentes razões: umas por vocação genuína, individualmente ou em romaria, em viagens de grupo; outras por curiosidade, pela arquitetura, pela beleza da cidade, para ver a ponte, como turistas”, esclarece o pároco de S. Gonçalo. E é até escolhida por quem é de fora da Paróquia, para momentos relevantes: “Há pessoas que, não sendo de cá, vêm cá casar por circunstâncias muito significativas e querem celebrar nesta igreja esse dia tão importante e decisivo nas suas vidas.” E ainda que não tenhamos dados que comprovem que o nome “Gonçalo” é mais comum em Amarante do que no resto do país, José Manuel Ferreira arrisca, com um sorriso, um palpite: “No contexto nacional, há vários nomes que são mais comuns. Diria que aqui o nome Gonçalo é tão comum como esses. Muito provavelmente, em alguns casos poderá ser um ato de devoção em relação ao Santo. Sei que é assim em alguns casos.”

Entre a cultura popular e cultura científica

S. Gonçalo partilha com Santo António a fama de casamenteiro. A quadra mais conhecida que lhe é dedicada é testemunho disso: “S. Gonçalo de Amarante/Casamenteiro das velhas/Por que não casais as novas/Que mal vos fizeram elas?”. Há muitas outras, mais atrevidas, que integram uma tradição popular vista como mais brejeira, que se manifesta também nos doces fálicos, que, sendo iguarias de romaria, são vendidos nas várias confeitarias de Amarante, em versões mais adaptadas aos gostos gastronómicos de hoje.

Mas a cultura popular em torno de S. Gonçalo tem outras manifestações. No estado do Piauí (Brasil), por exemplo, celebra-se com a Dança de S. Gonçalo e é considerado protetor dos fandangueiros e dos violeiros. Na música tradicional portuguesa, S. Gonçalo de Amarante tem sido cantado por artistas de referência como Isabel Silvestre, Júlio Pereira ou a Brigada Victor Jara

Para Mariana Sá, de 48 anos e amarantina, há muitos aspetos a explorar: “No teatro e na literatura, temos o “El Prodigio de Amarante”, de Antonio José da Silva, e a sua relação com a Inquisição; na música, os vilancicos dedicados a S. Gonçalo e a música popular; no folclore, as Danças de S. Gonçalo no Brasil e sua relação com as danças na Sé do Porto; e o culto fálico e toda a tradição e criatividade que ainda hoje suscita”. E destaca ainda um necessário trabalho de mapeamento: “Os caminhos das romarias cruzavam-se com os de Santiago de Compostela. Seria importante identificá-los e fazer também a georeferenciação do culto na cartografia do mundo português falante”. 

O interesse pelo Santo não é de agora. “Surgiu por acaso, quando estudava Economia Social e fui ‘atropelada’ por São Gonçalo. Tropeçava tantas vezes nele que tive de começar a vê-lo por outro prisma, o de símbolo ou marca, usado com vários propósitos ao longo dos séculos, culturais, socio-económicos, políticos e claro, religiosos”, explica. Esse caminho fê-la procurar o Padre Arlindo Cunha, autor da tese de doutoramento “São Gonçalo de Amarante, um vulto e um culto”. A partir daqui, Mariana Sá procurou aprofundar o olhar científico sobre o assunto: “Considero muito importante seguir a via académica, com todo rigor da metodologia científica, na abordagem a todos os temas que com S. Gonçalo se cruzam, caso contrário será sempre terreno especulativo.”

Da esquerda para a direita: Adelino Rosa, Mariana Sá, Padre Arlindo Magalhães, Frei José Augusto Marques. Apresentação de livro, em Amarante. Foto: Frei Severino Centomo (DR)

A parceria evoluiu para a celebração de um protocolo para o tratamento digital do acervo documental do Padre Arlindo Cunha, já no quadro das funções de Mariana Sá no CEAmt – Centro de Estudos Amarantinos. Daqui resultou a edição do “Breve Tratado da Vida e Milagres de São Gonçalo de Amarante”, apresentado a 10 de janeiro de 2023, um texto hagiográfico italiano, escrito por Frei Manuel Pereira, em 1672.

Com a morte de Arlindo Cunha, poucos dias depois do lançamento do livro, a parceria terminou. Mas o acervo ficou preservado na recém criada Fundação com o seu nome, em Gaia. 

Para Mariana Sá, os estudos académicos não anulam a tradição popular. Mas são vias distintas: “As tradições e as lendas existem, dão nota de lugares, pessoas e histórias passadas num tempo e num espaço, passam de boca em boca, de geração em geração e assim perduram. Fazem parte na nossa cultura popular, têm lugar na etnografia. Com os milagres passa-se o mesmo, têm lugar no estudo da hagiografia, que os enquadram também no tempo, no espaço e nas circunstâncias em que ocorrem.”

Construtor de pontes, casamenteiro, peregrino e evangelizador. Inspirador de arte, de tradições e de lendas. “Amarante adotou-o. Não foi a cidade, nem o concelho: foram os amarantinos”, afirma o pároco de S. Gonçalo, José Manuel Ferreira. Mas lembra: “S. Gonçalo é do Mundo”.